Os eventos extremos que indicam mudanças climáticas no Brasil
FUMACA AMAZONAS CENTRO DE SAO PAULO - FOTO PUBLICA JORGE ARAUJO
Legenda: Céu ficou escuro no centro de São Paulo durante a tarde em que fumaça de incêndio na Amazônia atingiu a cidade. Foto pública Jorge Araújo
Pessoas correndo e gritando desesperadas enquanto um paredão de areia avança e cobre municípios inteiros. Grandes cidades escurecendo às 15h por conta da fumaça produzida por um incêndio a milhares de quilômetros de distância.
As cenas registradas durante uma tempestade de areia no interior paulista, em setembro deste ano, e após um incêndio na Amazônia fazer com que partículas e fumaça chegassem a cidades como São Paulo e Curitiba, um ano antes, são reflexo das mudanças climáticas e do aumento das temperaturas no mundo, segundo meteorologistas e cientistas climáticos ouvidos pela BBC News Brasil.
Francisco de Assis, do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), diz que os fortes temporais, rajadas de vento e seca extrema registrados nos últimos anos no Brasil também são demonstrações de que o planeta se aqueceu nas últimas décadas.
"Vários fenômenos que têm acontecido desde os anos 2000 no Brasil estão associados à alta variação do clima decorrente do aquecimento que a Terra está passando", afirma o meteorologista.
"Aumento dos temporais, ventos fortes, tornados. Também tem as secas mais prolongadas, em 2001 na região Sudeste, em 2014/2015 e agora de novo, em 2020/2021. Se não fossem as termelétricas, a gente teria ficado sem energia."
Em 2020, Cuiabá, capital do Mato Grosso, registrou a maior temperatura em mais de cem anos: 42,7ºC, segundo medição do Inmet.
Em outubro de 2020, o Estado de São Paulo registrou a maior alta da história. Foi na cidade de Lins, no oeste paulista, onde o Inmet registrou 43,5ºC.
Assis explica que as mudanças na temperatura causam uma alta irregularidade das chuvas. Isso faz com que ocorram mais precipitações em alguns locais e menos em outros.
Isso é causado, segundo ele, por bloqueios atmosféricos que geram alterações dos ventos em altitudes mais elevadas.
Assis afirma que essas mudanças são causadas tanto por fatores naturais sazonais quanto por influência do homem, por conta da queima de combustíveis fósseis.
"Isso impactou diretamente, por exemplo, nos veranicos (períodos de estiagem na estação chuvosa). Eles duravam de 10 a 15 dias, mas hoje chega a ficar 30 dias sem chover em janeiro e fevereiro, impactando o nível dos reservatórios e as lavouras", diz.
Carlos Nobre, cientista do clima, também credita à elevação mundial nas temperaturas os fenômenos atípicos que têm sido testemunhados.
"Vimos ondas de calor e secas extremas, como a de 2012 a 2018 — a mais prolongada do Nordeste. Inundações, que aconteciam a cada 20 anos, tivemos em 2009, 2012 e 2021. Sem contar o nível recorde do rio Negro, no Amazonas, por conta dos recordes de chuva intensa", explica à BBC News Brasil.
Em junho deste ano, o rio Negro teve sua maior enchente em todo o registro histórico, iniciado em 1902.
Nobre explica que o aumento das temperaturas causa um desequilíbrio nas chuvas.
FUMACA E INCENDIO AMAZONAS - FOTO REUTERS
Legenda: Fumaça de incêndios na região Amazônica foi carregada pelo vento e fez escurecer cidades de outras regiões. Foto Reuters
"Isso acontece porque o vapor d'água sobe, a atmosfera fica com mais vapor, formam-se gotículas e chove. Hoje, com 1,5ºC a 2ºC mais quente, a seca fica ainda mais rigorosa e a chuva, também", afirma.
Ele explica que o calor também causa mais evaporação e as ressacas se tornam ainda mais fortes. As tempestades geradas nos mares se tornam mais intensas e causam grandes ondas oceânicas.
Desertificação
O meteorologista Francisco de Assis afirmou que outro fator causado pelas mudanças climáticas no Brasil é a desertificação de algumas regiões.
Uma reportagem da BBC News Brasil apontou que esse processo já engloba uma área equivalente à Inglaterra, no Nordeste e no norte de Minas Gerais.
Um relatório divulgado em agosto pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), um órgão das Organização das Nações Unidas (ONU), aponta que o Brasil abriga uma das áreas do mundo onde a mudança do clima tem provocado efeitos mais drásticos: o Semiárido.
Segundo o documento, por causa da mudança do clima, a região — que engloba boa parte do Nordeste e o norte de Minas Gerais — já tem enfrentado secas mais intensas e temperaturas mais altas que as habituais.
DESERTO ALAGOAS -FOTO GOVERNO ALAGOAS
Legenda: Desertificação atinge 32,8% de todo o território de Alagoas, o maior percentual em todo o Semiárido. Foto Governo de Alagoas
Essas condições, aliadas ao avanço do desmatamento na região, tendem a agravar a desertificação.
Assis diz não ser possível afirmar que as mudanças nas temperaturas são ou não sazonais.
"Não é possível saber se isso é um ciclo porque só temos 150 anos de observação na Terra. Trinta anos atrás estava mais frio, e agora ficou quente e não voltou mais. A medição real dos termômetros só tem 180 anos. Antes disso, havia apenas estudos não tão precisos, feitos a partir de carbono, simulados e paleontológicos", afirmou o meteorologista do Inmet.
Furacão
Carlos Nobre afirma que os dois únicos registros de furacões no Brasil foram o Catarina, que atingiu Santa Catarina em 2004, e outro registrado em 2019 no Espírito Santo e no sul da Bahia, mas que ficou no oceano.
Ele explica que esse tipo de fenômeno acontece quando a temperatura da água do mar está acima de 27 graus e o vento não tem cisalhamento — mudanças nas direções e velocidades do vento — até uma altura de 10 km.
"O Catarina se formou no fim de março de 2004, quando a água estava a 26,5ºC, algo atípico, mas não tinha cisalhamento. Devido a uma situação de baixa de pressão, ele adquiriu característica de furacão", detalha Nobre.
Para Nobre, a água vai esquentar nos próximos anos, mas ainda "é uma interrogação se vai haver mais furacões no Brasil".
"Não há dúvidas de que isso tem a ver com as mudanças climáticas. Vimos recordes de calor no Sudeste, na América Latina e em todo o Hemisfério do Sul", diz.
Tempestade de areia
Meteorologista com mais de 35 anos de experiência, Assis disse que não se lembra de nenhum registro de tempestade de areia como a que ocorreu neste ano em cidades do interior de São Paulo.
"Esse fenômeno aconteceu porque ficamos muito tempo sem chuvas, e isso causa uma secura e baixa umidade. Quando começaram os primeiros temporais na região, foram registradas rajadas de vento frio e seco. Quando juntou a poeira com a rajada de vento, causou aquela tempestade de areia que escureceu tudo", afirma.
O especialista diz que esse fenômeno já era comum na região no fim dos períodos mais secos, mas com uma intensidade menor.
NUVEM POEIRA FRANCA-IMAGEM TWITTER
Legenda: Nuvem de poeira registrada em cidades do interior de São Paulo. Foto reprodução Twitter
Para Nobre, a cidade de São Paulo deveria ser um exemplo para o Brasil de como a urbanização influencia no aumento das temperaturas e sobre o que pode ocorrer caso o desmatamento e aumento da poluição sejam replicados em outras regiões.
"A maior cidade da América Latina é São Paulo, que já aqueceu entre 3,5ºC a 4ºC desde 1950, se tornando uma ilha urbana de calor. O concreto, o asfalto e a falta de vegetação absorvem o calor e causam chuvas extremas, pois a brisa sobe a Serra do Mar e, ao chegar ao planalto, encontra essa região com ar mais aquecido. O vapor sobe mais rápido, gera nuvens mais intensas e com mais volume de água", explica.
Para o cientista climático, a COP26, conferência climática global em curso na Escócia, precisa ser um ponto de mudança para reduzir a emissão de gases do efeito estufa e diminuir o uso de carvão e combustíveis fósseis.
"Como vimos em inúmeros estudos, tivemos uma elevação de 1,1ºC na temperatura do planeta e já vemos essas situações extremas, como ondas de calor, tempestades, deslizamentos de terra, quebra de safra e incêndios florestais. Caso não sejam reduzidas as emissões e a temperatura aumente em 1,5ºC, haverá ainda mais consequências", diz Nobre.
Segundo ele, as emissões de poluentes vão aumentar ao menos até 2023. O ideal, na visão do cientista, é que os países, principalmente os mais poluentes, como Estados Unidos e China, se comprometam a reduzir drasticamente as emissões de poluentes.
"Ao menos até 2023, elas vão aumentar. A indústria do cimento, do aço e a agricultura estão em expansão. Mas os países deveriam colocar uma meta para reduzir em 50% até 2030. É um grande desafio, mas uma COP pode servir para grandes acordos ambientais", defende (BBC Brasil, 6/11/21)