País não pode perder o bonde do desenvolvimento tecnológico
Por Ana Paula Vescovi
Legenda: Aula de multimídia dos alunos do Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo
Agenda de tendências tecnológicas é ainda mais densa do que a de reorganizar economia do país.
Se formos muito titubeantes na reorganização mínima do Estado (reforma da Previdência, tributária, ajuste fiscal, privatizações) —capaz de evitar um colapso na economia—, correremos o risco de perder o bonde do desenvolvimento.
Recentemente, a guerra comercial entre Estados Unidos e China tem sido o tema a gerar mais incertezas nos mercados. Muitos já perceberam não se tratar de uma disputa tradicional no comércio, mas de uma batalha por padrões tecnológicos e hegemonia geopolítica. Trata-se de evento com consequências duradouras e impactantes.
De um lado, as gigantes norte-americanas Apple, Microsoft, Amazon, Google e Facebook; de outro lado, as gigantes chinesas Baidu, Alibaba, Tencent e Huawei.
São companhias maiores do que o PIB da maioria dos países e acumulam volume monumental de informações sobre indivíduos, relacionamentos, comportamentos e padrões de consumo.
Os novos padrões são viáveis em razão da maior capacidade computacional. Atualmente, o processamento gráfico alcança 80 vezes mais velocidade que as versões existentes há apenas cinco anos; e as soluções compartilhadas de nuvem permitem armazenamento mais barato e eficiente, com custo marginal cada vez mais baixo.
Aos poucos, as tecnologias digitais irão se espalhar, aprofundar e mudar o funcionamento de tudo. Temos a inteligência artificial e a ciência de dados; a conectividade, o matching e a segurança cibernética por meio de plataformas da internet; robótica e veículos autônomos; internet das coisas, que poderá levar os processos industriais à fronteira da eficiência; realidade virtual; fabricação digital com as impressoras 3D; novos materiais e biotecnologia; energias renováveis.
Novos padrões tecnológicos têm levado à acelerada digitalização do comércio e à substituição dos canais tradicionais de comunicação. Baseiam-se na combinação entre informação, tecnologia e logística para levar até os consumidores bens e serviços customizados.
O aumento da produtividade será imenso, desidratando ou simplesmente destruindo canais de intermediação entre compradores e vendedores, poupadores e investidores, representantes e representados, entre os fiscos e os pagadores de impostos.
Trarão benefícios à saúde, conforto às famílias, transparência e simplificação das relações sociais, empresariais e governamentais. Fico a imaginar o impacto de uma identidade digital, unificando CPF, RG, inscrições previdenciária, trabalhista e eleitoral.
Há desafios na transição. A formação de ativos intangíveis —com grande mobilidade— tem sido mais acelerada que a tradicional formação de capital físico. Indústrias tradicionais precisarão se reformular.
Há riscos, os quais demandarão ações do Estado ao causar instabilidades sociais e políticas: fraudes cibernéticas; invasão ilegal de dados pessoais; desemprego estrutural.
No Brasil, estamos absorvendo no susto e no improviso a avalanche tecnológica. A agenda para conseguirmos converter as tendências tecnológicas em desenvolvimento é ainda mais densa que a agenda de “reorganizar” a economia do país.
A atração de mão de obra de alta qualificação precisa deixar de ser tabu, e uma reforma da lei de imigrações precisa ser introduzida na agenda. Israel, entre outras ações, atraiu cientistas e engenheiros após o colapso da URSS. Atualmente, é um dos maiores celeiros de startups, exportador de serviços de alto valor, e possui PIB per capita quatro vezes o do Brasil.
Outros temas precisam de prioridade, pois precisamos ajustar a tributação e as tarifas de comércio aos padrões internacionais. A agenda de entrada na OCDE é a grande oportunidade. Falamos sobre ajustar a tributação sobre capitais, renda corporativa e dividendos, regras sobre preços de transferências e obrigações acessórias. Temos urgência na modernização do marco legal das telecomunicações (lei geral em tramitação avançada). São medidas que demandam, no máximo, legislação infraconstitucional, mais simples de aprovar.
Precisamos estimular a rápida absorção de tecnologias e, por isso, eliminar alíquotas de importação de bens de informática, telecomunicações e de bens de capital, o que depende apenas de decreto presidencial. Mas também é preciso melhorar a aprendizagem dos nossos jovens com melhores práticas educacionais; requalificar trabalhadores; desenvolver e reter talentos científicos.
Temos 25 milhões de desempregados e subempregados, renda média muito baixa e uma das sociedades mais desiguais do planeta. Não estamos em guerra comercial, mas sofreremos muito as suas consequências. E não merecemos perder esse bonde! (Ana Paula Vescovi é diretora de economia do Santander Brasil e foi secretária do Tesouro Nacional; Folha de S.Paulo, 9/9/19)
Descoladas da crise econômica, startups vivem ciclo paralelo de investimentos
Legenda: Hacktown, festival de empreendedorismo e tecnologia em Santa Rita do Sapucaí (MG); eventos crescem e se descocam no eixo Rio-SP
Em 2 anos, mais que dobra número de empresas iniciantes no país, financiadas por capital de risco.
Enquanto companhias tradicionais postergam investimentos, o mundo das startups mantém o clima de entusiasmo de 2018, quando o Brasil presenciou seus primeiros unicórnios (empresas iniciantes que valem mais de US$ 1 bilhão).
O otimismo não está presente apenas nos discursos motivacionais que costumam caracterizar a nova economia (baseada em serviços e modelos de negócios digitais e distante da indústria pesada), mas em números e perspectivas para que uma fila de startups galgue ao valor de 99, Gympass, Nubank ou iFood.
Investidores e especialistas desse mercado dividem o Brasil em dois: o dependente da macroeconomia e das incertezas políticas e o que se descola, ao menos em parte, para viver um ciclo paralelo.
“Nunca tivemos tanto dinheiro para startup como hoje”, diz Edson Rigonatti, fundador do Astella Investimentos, de venture capital (capital de risco). Ele ressalta que, além do SoftBank, cuja abertura do fundo de US$ 5 bilhões para a América Latina foi um marco, cresce a quantidade de empreendedores que fundam empresas pela segunda vez. “Saltou o número de empresas que miram Europa, México e Turquia nos últimos 18 meses.”
Desde o boom de startups, há cerca de quatro anos, 2018 e 2019 têm sido considerados especialmente prósperos. Neste ano, foram mais 150 investimentos de venture capital. Somam-se aos 320 de 2018, que movimentaram R$ 5 bilhões, de acordo com a Distrito, empresa de inovação aberta, e a Lavca (associação latino-americana de fundos do tipo).
Em 2017, o país tinha 5.147 startups, segundo a associação brasileira do setor. Hoje, contabiliza 12.715, das quais 2.800 fundadas em 2019.
“Comparando com os EUA, o Brasil vive algo semelhante ao momento pré-bolha da internet, de 2001. Não em relação à bolha, mas ao tipo de investidor, de níveis de valoração e de maturidade das empresas”, diz Humberto Matsuda, coordenador na Abvcap (Associação Brasileira de Private Equity e Venture Capital).
Segundo ele, a presença de alguns fundos diminuiu, mas a solidez das startups cresceu de forma robusta.
Outro fenômeno que mede a temperatura do setor é a recente disseminação de eventos de empreendedorismo fora do eixo Rio-São Paulo. Além de áreas maduras para a inovação, como Recife (PE) e Florianópolis (SC), cidades do interior de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul têm promovido encontros com a promessa de novos polos —são os estados com maior participação de startup, ao lado de Rio e São Paulo.
As grandes empresas buscam se vincular à pesquisa acadêmica e às soluções que nascem dessas regiões. Santa Rita do Sapucaí, cidade de 40 mil habitantes que sediou até este domingo (8) o evento Hacktown, foi o local escolhido pela TIM para testes de 5G, tecnologia alvo de disputa global e que gera uma corrida no país com a proximidade do leilão da Anatel em 2020.
Com dinheiro de outras companhias, como Google e Xiaomi, a cidade bucólica virou cenário para discussão sobre inovação (e para a geração Z pintar o rosto com neon em festa matinal de ioga).
“Há otimismo nesse setor porque o que acontece no mundo é irreversível e o investidor sabe disso, vê oportunidade”, afirmou Leonardo Capdeville, chefe de tecnologia da TIM, no evento.
“O mercado reconhece o valor da TIM como R$ 600 por cliente. Nas fintechs, o mercado vê de R$ 4.000 a R$ 10 mil por cliente”, compara.
Legenda: Fintech é um termo em inglês que une as palavras "financial" (financeiro) e a abreviação de "technology" (tecnologia). São jovens empresas do setor financeiro (startups) que têm na tecnologia e no sistema disruptivo seus diferenciais .
Para ficarem menos sujeitas à inércia econômica, as maiores empresas do país se engajaram nesse movimento na última década. Além de todo o setor financeiro, que apesar da concentração acompanha o crescimento exponencial do Nubank, grupos como Raízen, Pão de Açúcar, Votorantim e Magazine Luiza investem em startups ou braços próprios de tecnologia.
“Há três anos, a gente falava ‘olha o que está acontecendo’, e as empresas entendiam que era o futuro, não o presente. Hoje se sentem tranquilas para fazer uma transição. Quem pode afirmar que o modelo de supermercado vai durar 15 anos?”, diz Pedro Englert, presidente da Startse, de educação corporativa.
Apesar da fase promissora, analistas lembram que a classe de ativos globais para startups tem um ciclo próprio e que suas mudanças têm o poder de afetar as empresas diretamente, assim como a alta das commodities impacta a “velha economia” (Folha de S.Paulo, 9/9/19)