País precisa evoluir na revolução do agro, afirma Brito

“[Desmatamento ilegal] é a prova do fracasso completo da política pública brasileira”, diz Marcelo Brito. Foto: Silvia Costanti Valor
Brasil pode perder capacidade de ganhar produtividade no campo se a forma de produzir não for alterada, alerta ex-presidente da Abag.
O agronegócio cresceu nos últimos anos com o apoio dos ganhos de produtividade oferecidos por inovações científicas, mas os recursos naturais estão se esgotando e, se a forma de produzir não mudar, o Brasil corre o risco de perder capacidade de continuar a obter mais eficiência no campo. O alerta é de Marcello Brito, diretor acadêmico da FDC Agroambiental, hub de inteligência da Fundação Dom Cabral (FDC) para impulsionar a inovação no agronegócio.
Em entrevista ao Valor, o ex-presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) afirma que o critério do que é sustentável em práticas agronômicas vem mudando nos últimos anos, e que agora é tempo de os produtores rurais “evoluírem”.
Depois do salto dado na “revolução verde”, que transformou o Brasil de importador para exportador de alimentos da metade do século passado para cá, o especialista defende uma “evolução dentro da revolução”.
Em sua visão, o incentivo para essa transformação precisa contar com uma gestão pública que destrave os recursos de financiamento para atividades sustentáveis em escala e de mais pesquisas científicas que identifiquem potenciais de remoção de gases de efeito estufa da atmosfera.
Valor: Nas últimas décadas, o agronegócio cresceu em produtividade, gerou renda e dinamizou a economia no interior, mas surgiram problemas como degradação dos solos, exaustão de recursos hídricos e avanço do desmatamento. Quais as principais lições dessa história?
Marcello Brito: O Brasil fez um trabalho de casa impressionante. Saiu de importador de alimentos para ser o maior exportador do mundo. Só que vivemos de ciclos. Aquilo que achamos sustentável hoje não necessariamente será amanhã. Hoje falamos de práticas regenerativas, ILPF [integração lavoura-pecuária-floresta], agrofloresta. O modelo de agricultura que desenvolvemos nas últimas três décadas no mundo trouxe um saldo de degradação. Hoje, aproximadamente 40% das áreas agrícolas do mundo estão degradadas. Precisamos de um novo salto.
No Brasil, o setor agrário é o único com crescimento constante de produtividade. Em duas décadas, o crescimento da produtividade foi na faixa de 4% ao ano. Mas isso caiu e estamos agora em pouco mais de 1% de crescimento. Continuamos crescendo em produtividade, mas aquele ritmo inicial não existe mais. Boa parte [da perda desse ritmo] é por causa de degradação [de solo], mas a maioria é por mudança climática. Isso já estava no radar há muitos anos, só não foi levado a sério. A lição é que nós sabemos como fazer. A questão é como aceleramos essa transformação. A revolução nós fizemos, agora nós precisamos evoluir nessa revolução.
Valor: Considerando o avanço dos extremos climáticos, é possível que o agro perca capacidade de crescer com produtividade?
Brito: Eu não sei dizer quando e se, mas olhando hoje, o caminho é esse. Temos que observar com muito carinho a questão da água. A tecnologia e a ciência avançam, criam-se novas sementes resistentes, novos fertilizantes. Mas sem água não tem agricultura. Floresta é caixa d'água. Esse vai ser o ponto de grande virada ou de grande falta do agronegócio nacional. Se não olharmos para isso, nós não vamos só perder produtividade, vamos perder áreas de cultivo bastante grandes. Inclusive já estamos perdendo algumas, como é o caso do Rio Grande do Sul e de algumas áreas nos extremos do Cerrado.
Valor: Muitos produtores afirmam que já produzem de forma sustentável e que a sociedade não entende. Existe uma dificuldade de comunicação, ou esses produtores precisam avançar?
Brito: Tem de tudo. Os cientistas não esperavam uma degradação tão rápida das questões climáticas como agora. O que estávamos apontando que aconteceria em 2030 ou 2040 já está acontecendo agora. Isso exige uma mudança muito grande, porque o que eu estou fazendo não necessariamente será o melhor. Ou seja, eu preciso transformar. É só olhar o Rio Grande do Sul. Quem é que quer fazer investimento no Sul hoje? Nos últimos dez anos, houve sete extremos climáticos com perdas monstruosas [no Estado].
Existem estudos da Embrapa e de universidades que apontavam para isso há 15, 20 anos. Hoje, se fala em perdas de bilhões por conta de clima em uma certa região, e acham pouco. Quantos bilhões precisamos perder para que a sociedade entenda que isso é dinheiro e tempo não recuperáveis?
Eu entendo o produtor que diz que fez um monte de coisa diferente. As pessoas acham que o produtor está fazendo errado, mas não. É porque não é mais suficiente, precisa evoluir. Hoje, os grandes investimentos em agricultura regenerativa são das grandes empresas do agro. Será que elas estão erradas e o correto são os que acham que não precisa fazer mais nada? Não dá mais para se esconder atrás de qualquer sombra. O tempo é de transformação.
Valor: No ano passado houve muitos eventos climáticos extremos que impactaram o agro, com as enchentes no Rio Grande do Sul, os incêndios em São Paulo e a estiagem no Centro-Oeste. O que falta para os produtores e as lideranças colocarem a questão climática como prioridade?
Brito: Isso está acontecendo. Pode ser que não aconteça na velocidade que a gente gostaria. Nós tivemos a aprovação recente da Lei de Bioinsumos. O Brasil é o país que mais utiliza bioinsumos - considerando fertilizantes verdes e [defensivos] biológicos para combate de pragas e doenças - e onde a produção mais acelera. O Brasil foi o primeiro país a utilizar plantio direto, e já adota mais do que o dobro dos Estados Unidos. As coisas estão acontecendo, mas o nosso gigantismo nesse setor é tal que não conseguimos mudar de um dia para o outro.
Transformar a agricultura tradicional em regenerativa depende de alguns pilares. O primeiro é financiamento, mudar a cabeça do setor financeiro. O segundo é fazer uma mudança de paradigma bastante grande da cabeça do produtor. E o último pilar, o mais difícil de todos, é garantir renda para o pequeno e médio agricultor. A agricultura americana é sem risco.
Em qualquer extremo climático, todos os custos envolvidos serão cobertos pelo seguro. No Brasil não, aqui o produtor quebra. As transformações muito provavelmente se darão mais rapidamente nos Estados Unidos ou em um país que tenha um sistema de aplicação de ciência e tecnologia e um sistema diferenciado de financiamento e seguros mais avançados. Mas nós vamos alcançar.
Os grandes investimentos em agricultura regenerativa são das empresas”
Valor: Quais são os outros desafios para a agricultura ter menor impacto ambiental no Brasil?
Brito: Nós colocamos na nossa NDC [Contribuição Nacionalmente Determinada, na sigla em inglês, que é a meta climática estabelecida por um país] que seremos um país de desmatamento zero em 2030. Hoje o Brasil quer acabar com o desmantelamento ilegal e o legal. O desmantelamento ilegal nada mais é do que uma vergonha nacional. Nós brasileiros deveríamos ter vergonha de discutir tal tema, porque é a prova do fracasso completo da política pública brasileira. Para isso precisa de polícia.
Sobre acabar com o desmatamento legal, nós temos uma lei aqui que obriga o produtor a preservar de 20% a 80% da sua área. Para acabar com o desmatamento legal precisamos ter ferramentas financeiras, incentivos. Temos uma Lei de Pagamentos por Serviços Ambientais [PSA] aprovada há alguns anos. Mas o único PSA que funciona no Brasil é o pagamento por água que acontece quando tem uma crise hídrica. Aí cria-se um sistema de PSA e se começa recuperar água, nascentes. Se nós não desenvolvermos um sistema que remunere a preservação e a conservação ambiental, não vamos entregar a meta de desmatamento legal zero em 2030. Eu acho nobre o propósito, mas temo que, ao chegarmos lá, não vamos conseguir.
Valor: Ainda há poucas operações de financiamento para transformar a agricultura. Quais os desafios para essas operações?
Brito: É uma combinação de vários fatores. Por que nós não praticamos a integração lavoura, pecuária e floresta no Arco do Desmatamento? Porque se tem lavoura, pecuária e floresta, precisa ter demanda para esses produtos. Se não tem demanda na região, por que vai criar oferta?
Um dos grandes problemas da Amazônia brasileira é que queremos resolver pelo lado da oferta, e não pelo lado da demanda. A Amazônia hoje representa menos de 5% do consumo nacional da maioria dos produtos. Não vai haver grandes investimentos a não ser que você crie canais de distribuição que deem acesso à demanda. Há projetos destravando agora, mas ainda não na escala necessária. No caso da restauração florestal, nós temos grandes empresas que se dispuseram a entrar nesse setor, mas plantaram muito pouco, o que mostra uma falha na nossa política pública. E isso envolve o sistema de financiamento, o sistema fundiário e o sistema de licenciamento.
Eu acho que tem projeto, tem dinheiro, mas falta um grande investimento em gestão pública que dê as condições necessárias para que os investimentos privados aconteçam. O xerife precisa chegar antes do bandido e organizar a casa. Hoje o ângulo dos investimentos utilizado no Brasil é o socioeconômico. Dão terra para o cidadão, mas não dão financiamento, assistência técnica, acesso à ciência. Se a visão fosse econômico-social, cuidariam primeiro das necessidades obrigatórias para viabilizar o investimento econômico. Visto que tal ocupação econômica é viável, daí se veriam os aspectos sociais e ambientais.
Já a visão socioeconômica geralmente depende de filantropia, que é sazonal e não dá perpetuidade a quase nada. Não é por falta de dinheiro que a nossa Amazônia está tão degradada. A Amazônia já recebeu bilhões e bilhões de dólares nos últimos 30 anos, principalmente de filantropia. Mas não foi sob ponto de vista econômico-social, mas sempre sob o ponto de vista socioeconômico. E aí as coisas não escalam, são várias iniciativas pequenas que não resolvem absolutamente nada.
Valor: Para alcançar a NDC, o agro também precisa reduzir suas emissões de carbono. Para isso, o setor precisa de mais inovação ou seria possível só ampliar a escala do que já se faz?
Brito: Precisa de ciência. Os cientistas dizem que o uso da terra representa entre 22% e 26% das emissões mundiais, mas têm pouca resposta sobre o quanto o setor remove. Nós precisamos ampliar os estudos sobre a capacidade de remoção [de gases de efeito estufa] pela agropecuária. Se estamos mudando para práticas regenerativas, isso representa o quê de remoção? Na hora que descobrirmos esse potencial, vamos transformar toda a estrutura do agronegócio.
Valor: A guerra comercial promovida pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, levantou expectativas de que o agronegócio brasileiro possa se beneficiar com o aumento da demanda da China. O Brasil pode se fiar nessa perspectiva?
Brito: Não, não pode, porque isso [guerra comercial] provoca um desbalanceamento do mundo. Uma ou outra cadeia pode ganhar, mas no todo, o Brasil perde. O momento agora é de muita calma e de saber quais são as oportunidades que isso pode gerar, porque os problemas virão. Vários setores da economia brasileira serão fortemente impactados. Já há uma redução dos embarques de contêineres no mundo.
Isso mostra um resfriamento do comércio internacional, e vai acabar batendo aqui, como em vários outros países também. Se a economia está ruim lá fora, compram menos de nós. Não é porque tem uma briga entre China e Estados Unidos, que a China vai comprar tudo daqui. Também pode acontecer de China e Estados Unidos fazerem um acordo, e o Brasil sair perdendo por uma exigência americana de comprarem mais produtos agrícolas dele.
Valor: Para a COP30, muitas lideranças do agro brasileiro temem qual vai ser a imagem que vai ser passada sobre o setor. Essa preocupação tem fundamento?
Brito: Sinceramente, eu não vejo risco nenhum. Eu vejo um desentendimento completo do que é uma COP. Ninguém está vindo para COP para discutir o agronegócio brasileiro. A COP não é isso, é uma conferência sobre clima. Estamos olhando para discussões de grandes temas de impacto planetário, e não de impacto local. O tema agro não faz parte das discussões da convenção do clima. Existe o tema de sistemas alimentares, que está sendo tocado pelos Champions, e será discutido nos debates paralelos. Achar que os negociadores e observadores internacionais vão vir ao Brasil para fazer essa discussão [sobre o agro] na COP é não entender o que é que estamos fazendo.
O meu medo é que as pessoas enxerguem a COP como se fosse um Anuga, que é uma grande feira internacional, ou um grande congresso, e não é nada disso. As pessoas não virão ao Brasil para discutir os problemas brasileiros, como desmatamento, demarcação de terras indígenas, restauração. Esses são todos assuntos que cabem nas discussões durante a COP, mas não fazem parte da pauta da ação.
Valor: O senhor espera que algo relevante emerja até a COP?
Brito: Não. O que me deixou triste é que eu esperava que o ano da COP nos trouxesse a oportunidade de procurar uma maior harmonização do tema agroambiental no Brasil. Que fosse um momento em que adultos pudessem sentar e trazer esses diálogos impossíveis à mesa e discutir seriamente as transformações necessárias. Isso não aconteceu por parte do governo, nem do setor privado nem da academia. Estamos a 200 dias da COP, e não sabemos nem qual é a agenda básica.
Não tem campo para grandes negociações internacionais, não tem ambiente para grandes estruturações de financiamento climático. O presidente [da COP] André Corrêa do Lago foi muito inteligente em falar que essa é a COP da implementação. Porque não cabe nenhum tipo de negociação, então só nos resta a implementação. Eu só espero que nós tenhamos o que implementar, como implementar e os parceiros para fazer as devidas implementações (Globo Rural, 1/5/25)