Petróleo caro e Rússia aceleram a busca por fontes alternativas de energia
Parque eólico no Rio Grande do Norte Foto JF Diorio
Especialistas afirmam que, historicamente, conflitos têm potencial para provocar grandes transformações na sociedade; guerra na Ucrânia pode ser um impulso para a energia limpa, acelerando a transição energética.
A elevada dependência da Europa pela energia russa será o combustível para o mundo acelerar a transição energética nos próximos anos. Desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, algumas medidas já apontam para mudanças significativas na geopolítica energética do mundo, a exemplo da parceria anunciada ontem entre Estados Unidos e União Europeia. O plano é exportar gás natural liquefeito (GNL) americano para suprir a demanda europeia e reduzir as compras da Rússia.
Especialistas afirmam que, historicamente, conflitos como o atual têm potencial para provocar grandes transformações na sociedade. Mas, desta vez, o movimento será mais complexo. Ao mesmo tempo que vários países já começam a acelerar novas tecnologias para substituir o petróleo e cumprir as metas de descarbonização, eles também estão recorrendo a fontes tradicionais, demonizadas no passado, como o carvão. Há também iniciativas para postergar o desligamento de unidades nucleares. No curto prazo, a ordem é garantir a segurança energética da população.
Na avaliação de especialistas, a transição energética, que até então era um dos assuntos mais relevantes do mundo, não deixará de ser pauta. Mas esse processo terá muitos avanços e retrocessos. “A Europa, por exemplo, vai ter de reorganizar o fornecimento de energia no curto prazo, e não será com energia limpa”, diz George Almeida, sócio-diretor da consultoria Roland Berger. Neste momento, ela precisa de soluções rápidas, que já estão à mão.
Alternativas
No longo prazo, a corrida por novas tecnologias pode antecipar em quatro ou cinco anos a redução da dependência do combustível da Rússia. Nesse cenário, os veículos elétricos devem ganhar mais competitividade diante da volatilidade do petróleo, que chegou a bater US$ 140 dólares o barril no início do mês e continua com o preço elevado. A mobilidade elétrica pode aumentar sua participação no mundo, ganhar preços mais populares e acelerar a infraestrutura necessária para crescer.
O hidrogênio verde, produzido por meio da eletrólise da água, que separa o hidrogênio do oxigênio, também vai ganhar novo impulso diante do agravamento do conflito. Chamadas mundiais para criar núcleos de produção de hidrogênio já começam a pipocar na Europa, diz a professora do Departamento de Química da Universidade Federal de São Carlos Lucia Helena Mascaro, que trabalha no desenvolvimento de catalisadores para reduzir o consumo de energia no processo de separação do hidrogênio do oxigênio.
Antes de o conflito ter início, já havia quase 360 projetos para a produção de hidrogênio verde em grande escala no mundo, o que somava US$ 150 bilhões (R$ 753 bilhões, pelo dólar de ontem) em investimentos, segundo a consultoria McKinsey. Se o número já era considerado o começo de uma revolução, o montante esperado para agora tem potencial para tornar esse combustível mais competitivo e viável.
Lucia explica que os investimentos envolvem sobretudo soluções para destravar dois grandes gargalos do mercado de hidrogênio. O uso intensivo da energia é um deles. Uma planta de eletrólise de 90 megawatts (MW), por exemplo, produz 11.100 toneladas de hidrogênio. É pouco diante de uma demanda de milhões de toneladas. Só a Alemanha quer comprar inicialmente 5 milhões de toneladas. Ou seja, encontrar soluções que reduzam o consumo de energia elétrica é primordial para a expansão do combustível no mundo.
Logística
Outro desafio é encontrar alternativas de transporte do hidrogênio. Um dos métodos avaliados pelo mercado é transformar o hidrogênio em amônia e transportá-la em navios por grandes distâncias. No destino, a amônia verde pode ser usada diretamente na indústria, como na fabricação de fertilizantes, ou transformada novamente em hidrogênio. O produto também pode ser transportado na forma de gás comprimido ou liquefeito.
Encontrar a solução para essas questões significa baratear o custo. Hoje o preço do quilo do hidrogênio cinza (produzido com energia poluente) é US$ 2. O verde, feito com energia limpa, está entre US$ 5 e US$ 8. O objetivo é que, até 2040, esteja abaixo de US$ 1.
“Esse processo será acelerado porque os países vão investir nesse combustível. Para sair do oligopólio do petróleo e gás, vão fazer mais leilões de energia eólica e solar (consideradas as principais fontes no processo do hidrogênio verde)”, diz o coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel/UFRJ), Nivalde de Castro. O Brasil, por causa do potencial nas duas fontes elétricas, pode se tornar um grande fornecedor de hidrogênio para o mundo – calcula-se que, para se aproveitar desse mercado, seria necessário dobrar a capacidade atual da matriz elétrica brasileira, de cerca de 180 gigawatts, só com energia limpa.
Mas a transição energética não vai ocorrer apenas com energias renováveis. A polêmica energia nuclear também deve ganhar espaço nessa nova realidade. “As empresas não falavam muito sobre essa fonte, mas ela nunca deixou de estar nos planos, pois tem capacidade para gerar muita energia”, diz o sócio da KPMG Anderson Dutra. Além disso, diz ele, pode ser considerada energia limpa, que não emite gases de efeito estufa.
Na avaliação dele, no Brasil, a situação é um pouco diferente. Como a matriz já é sustentável (48% da matriz energética e 80% da matriz elétrica), o pré-sal deve ser ainda bastante explorado. O gás natural, afirma o executivo, deve ser a base dessa transição. Além de garantir segurança, por não ser intermitente como eólica e solar, é menos poluente.
O gás e as energias eólica e solar vão receber muitos investimentos, afirma Dutra. “O conflito fortalece a corrida pelas renováveis e pela segurança energética. Muitos entenderam que ter produção interna é questão de soberania nacional”, diz a presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica), Elbia Gannoum. “Mas temos de ter em mente que essa é uma pauta de longo prazo” (O Estado de S.Paulo, 26/3/22)