18/04/2022

Prestes a completar 50 anos, Embrapa vive crise de identidade

Prestes a completar 50 anos, Embrapa vive crise de identidade

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Reforma proposta pela diretoria explicita visões internas e externas divergentes sobre papel e estrutura da estatal.

Reconhecida pela atuação decisiva para o desenvolvimento do agro brasileiro há quase 50 anos, a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) vive uma crise de identidade.

A polêmica interna eclodiu quando a atual gestão tirou do papel um projeto de reestruturação administrativa, agravando um desgaste que já vinha ocorrendo há tempos.

De um lado, funcionários —especialmente os pesquisadores, que ocupam 2.200 postos de um quadro de 8.000 pessoas— se dizem insatisfeitos com o que veem como excesso de controle burocrático e poucas condições para a pesquisa propriamente dita.

De outro, a direção critica o que entende como excesso de pessoal administrativo e sobreposições de funções. Por isso, deseja acelerar as aposentadorias, e não descarta mais um plano de demissões incentivadas.

Para além do conflito administrativo, a Embrapa também vive outro de caráter mais existencial. Uns defendem uma aproximação maior com o mercado, por meio de participações societárias indiretas —posição do presidente da estatal, Celso Moretti, que tem mais de 30 anos de casa.

Outros defendem a continuidade do modelo atual, que privilegia os contratos de royalties para obter renda com as inovações que chegam às prateleiras das casas agropecuárias —com os quais, segundo Moretti, a Embrapa estaria deixando de faturar.

 

Segundo a estatal, o valor estimado de sua contribuição para a agricultura nacional, no ano de 2020, foi de R$ 62 bilhões e 41 mil empregos —impacto muito maior do que seu orçamento anual, de cerca de R$ 3,4 bilhões no mesmo ano.

Alguns exemplos dessa contribuição, nas últimas décadas, são a fixação biológica de nitrogênio, o zoneamento dos riscos climáticos, o melhoramento genético dos rebanhos e o desenvolvimento de pastagens mais adaptadas aos solos e climas do país. A essas inovações se somam inúmeras variedades desenvolvidas por seus pesquisadores.

A maior parte desse trabalho é feita nas 43 unidades descentralizadas da estatal. Para quem trabalha na ponta, a distância entre suas atividades e a sede, em Brasília, é muito grande.

A solução apresentada pela direção, mas criticada por funcionários, é a reforma, que daria maior eficiência à gestão e conferiria maior agilidade na tomada de decisões, além de abrir caminho para uma maior aproximação com empresas privadas.

Se correr como planejado por Moretti, a mudança representaria economia anual de R$ 222 milhões —equivalentes a cerca de 7% do orçamento anual da Embrapa.

Cerca de 92% dessa redução, no entanto, resultará de aposentadorias compulsórias de funcionários com 75 anos, que ainda depende de decisão judicial. Em primeira instância, a Justiça Federal autorizou os funcionários dessa faixa etária —atualmente 83— a permanecerem na ativa.

"Isso está sendo trabalhado, e acreditamos que será revertido. Mas é preciso deixar claro que não haverá demissões", afirma Moretti, que diz estudar a realização de um concurso para contratar pesquisadores, o que não acontece desde 2010.

"A nossa percepção, corroborada pelo trabalho da Falconi [consultoria contratada para orientar o plano de reformulação], é que a Embrapa tem uma estrutura muito verticalizada", avalia.

As mudanças propostas criam mais uma diretoria-executiva, totalizando quatro, e eliminam as cinco secretarias que respondem a essas diretorias, hoje funcionando como superintendências. Para o presidente da Embrapa, a área administrativa tem hoje o dobro de funcionários necessários.

O projeto desagradou o Sinpaf (Sindicato Nacional dos Trabalhadores de Pesquisa e Desenvolvimento Agropecuário), que inclui cerca de 5.000 empregados da Embrapa, entre pesquisadores, analistas, técnicos e assistentes, diz o presidente do sindicato, Marcus Vinicius Vidal.

Ele considera que houve pouca discussão com os funcionários da base da pirâmide sobre a reforma, e que falta transparência em relação aos detalhes do projeto de reestruturação, que deveria, na sua opinião, ser produzido internamente, não por meio de uma consultoria contratada.

"Não nos deram acesso integral ao estudo, nos mostraram apenas tópicos em slides. Tudo bem que é preciso reduzir a burocracia e o excesso de cargos, mas não desta forma. Uma economia de R$ 200 milhões ou R$ 300 milhões em um prazo de 12 anos não é significativa. O foco deveria ser mais recursos públicos para o orçamento da empresa", diz.

"No documento que o presidente da Embrapa apresentou [com o projeto de reestruturação], a palavra pesquisador não aparece", diz Eduardo Assad, pesquisador da Embrapa por 35 anos, reconhecido pelos trabalhos sobre os efeitos das mudanças climáticas na produção agropecuária.

Segundo ele, pesquisadores têm reclamado da estrutura burocrática que foi montada, do tipo de acompanhamento feito e, sobretudo, do grande distanciamento das diretorias com as unidades.

"Foi montado um monstro burocrático que desanima todo mundo. E isso não é novo, os pesquisadores têm reclamado disso há muito tempo. São sistemas de controle fechados, engessados", complementa Assad, que já chefiou duas unidades (Cerrado e Agricultura Digital).

Ex-ministro da Agricultura (governo Lula), ex-presidente do Conselho de Administração da Embrapa e ex-secretário-executivo do ministério, Luís Carlos Guedes Pinto considera que falta à gestão atual capacidade de mobilizar o corpo técnico.

Acompanhando a empresa desde a sua pré-história, literalmente, no início de 1972, viu de perto ser constituído o grupo de trabalho formado por apenas duas pessoas para elaborar o que viria a ser o embrião da Embrapa.

"Faço questão de destacar esse ponto porque todo mundo pensa que as coisas começaram com a Embrapa, mas não, havia uma estrutura muito importante no Ministério da Agricultura antes da Embrapa", diz ele, em referência à iniciativa de um departamento da pasta em conjunto com uma rede inicial de 12 institutos de pesquisa e cerca de mil pesquisadores, que resultou na criação da estatal.

Entre aqueles afetados pelo trabalho da Embrapa, também há divisão. De um lado, Luiz Zarref, um dos coordenadores do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra), concorda com as críticas do sindicato. Ele afirma ainda que a Embrapa deveria ser mantida exclusivamente com recursos públicos.

"A função da Embrapa é fazer pesquisa, não tem obrigação de dar lucros", diz Zarref.

Já o consultor José Carlos Hausknecht, da MB Associados, avalia como positiva a orientação por ampliar os vínculos com o setor empresarial.

"A Embrapa não tem essa vocação de sair e buscar o mercado, apesar de buscar parcerias em alguns produtos. Antes parece que havia preconceito em fazer coisas assim, mas pelo visto isso tem melhorado", diz.

Ele afirma que nas últimas décadas a empresa perdeu relevância, na comparação com o setor privado —também por mérito deste último, que investiu em pesquisa aplicada, principalmente em milho, soja, cana e café.

"Mas a Embrapa ainda tem muita importância na pesquisa básica, que não atrai o capital. É o caso das pesquisas sobre pastagens, pesquisas com microorganismos, bioinsumos, nichos que também contam com startups", diz Hausknecht.

Para a presidente da SRB (Sociedade Rural Brasileira), Teresa Vendramini, a Embrapa ainda tem sido o motor do agronegócio brasileiro.

"O sucesso do agronegócio brasileiro se deve à pesquisa e à ciência da Embrapa, que ampliaram nosso conhecimento sobre o solo, o clima e técnicas agrícolas que possibilitaram aumentar a produtividade da agricultura e da pecuária", disse à Folha, por email (Folha de S.Paulo, 16/4/22)