09/01/2018

Queijo canastra deixa a roça

Queijos Capela Velha em período de maturação: região de Minas Gerais tem 793 produtores

Jovens resgatam cultura familiar e produto, elevado à categoria gourmet, é vendido em empórios de SP e Rio.

Ao lado da águia com um queijo no bico, tatuada no braço direito, está a data da primeira grande conquista de Guilherme Ferreira, de 31 anos. No dia 8 de junho de 2015, o veterinário que largou tudo para fazer queijo na Serra da Canastra, no interior de Minas Gerais, tornou-se o primeiro brasileiro a ganhar uma medalha no Mondial du Fromage, na França – berço dos melhores queijos do mundo. A premiação não só ajudou Ferreira a se firmar na produção de queijos artesanais como transformou a comunidade da Serra da Canastra em vitrine para o Brasil.

Nascido em Limeira, no interior de São Paulo, Ferreira resgatou uma cultura que começou com os avós, em São Roque de Minas, e foi interrompida pelo pai quando mudou-se da cidade. Mas o gosto pela vida simples da roça levou o recém-formado veterinário para a região. No começo, exercia a profissão nas fazendas, mas o trabalho durou pouco. Hoje ele faz parte de uma nova geração que está transformando o processo de produção do tradicional queijo canastra – elevado à categoria “gourmet” e vendido em grandes empórios de São Paulo e Rio de Janeiro. “Comecei a resgatar tudo, das práticas usadas pelos parentes antigos à raça de gado caracu, que dá menos leite, mas mais saboroso. Foi assim que surgiu o Capim Canastra (marca de seu queijo).”

Como Ferreira, outros jovens desistiram de carreiras promissoras para assumir o negócio dos pais e melhorar o valor agregado do produto, que agora conta com vários prêmios internacionais. Na bagagem, eles trazem o frescor de quem acaba de sair da faculdade, com ideias inovadoras e muita tecnologia. A receita do queijo canastra – herança da culinária portuguesa – continua a mesma. O que muda são os conceitos de queijo maturado em vez de fresco, as instalações e as relações comerciais, muito mais profissionais que no passado e superconectadas com a rede. Todos estão no Facebook e no Instagram, e postam sem parar – estratégia para manter o queijo em evidência.

O queijo canastra, considerado patrimônio cultural imaterial brasileiro, é produzido em sete municípios nas redondezas da Serra da Canastra, local que abriga um parque estadual e onde fica a nascente do Rio São Francisco. É ali, num local marcado pela calmaria da natureza, que os jovens trocaram a modernidade dos grandes centros pela cultura da roça. Feito de leite cru, o queijo exige dedicação integral e precisa ser fabricado logo após a ordenha. Ou seja, os produtores não param nem sábado, domingo ou “dia santo”, como dizem por lá para se referir aos feriados.

Rotina dura

Mas foi essa rotina dura que tirou Hugo Faria Leite, de 24 anos, de um famoso escritório de arquitetura em Belo Horizonte para a Roça da Cidade – fazenda que dá nome ao queijo feito pela família. Leite estudou um ano em Turim, na Itália, e seis meses na Inglaterra, mas desde julho do ano passado se dedica inteiramente à queijaria em São Roque de Minas, cidade de 7 mil habitantes. De lá para cá, ele provocou uma revolução na empresa. As mudanças estão em cada detalhe, das embalagens personalizadas ao planejamento e organização da queijaria. “Temos um histórico de tudo que os clientes compram, de como eles gostam do queijo e quando cada um comprou”, diz Leite. “Se houver algum problema na entrega, já sabemos o que fazer para não repetir o erro. Isso conquista o cliente.”

As instalações também foram modernizadas para receber o número crescente de turistas que chegam à região. Até agora, o turismo era focado apenas nas belas cachoeiras da Serra, mas hoje muita gente já inclui no passeio a rota do queijo, com degustação nas principais fazendas produtoras. 

Ele conta que, apesar de gostar da profissão de arquiteto, a fazenda o conquistou. Além disso, com a melhora do preço do queijo e maior visibilidade, Leite diz que começou a perceber que o pai estava ficando para trás. “De fora, via que todos estavam inovando e ele não tinha tempo para fazer nada.” Seu pai, João Carlos Leite, é conhecido no mercado pela luta para regularizar o queijo de leite cru no Brasil. Ele é presidente da Associação de Produtores de Queijo Canastra (Aprocan) e gasta boa parte de seu tempo viajando pelo País fazendo palestras sobre o queijo maturado.

Durante anos, o produto foi considerado irregular e, por isso, o preço era desvalorizado. Na última década, porém, os produtores travaram uma briga com o governo para normatizar a comercialização dos queijos artesanais, diz Paulo Matos, que assumiu os negócios depois da aposentadoria do pai e lançou o queijo Pingo do Mula. Ele conta que, depois de muitas idas e vindas, foi possível chegar a uma legislação que permitiu e facilitou a venda dos queijos.

Para isso, os produtores precisaram se enquadrar em exigências sanitárias. No curral, por exemplo, o piso, que era de terra batida, foi concretado para facilitar a limpeza; na queijaria, todo cuidado para não contaminar o leite. Ninguém pode entrar no local sem as vestimentas adequadas. A maioria instalou sistemas que levam o leite da ordenha direto para a queijaria por meio de dutos.

Para os jovens queijeiros, cumprir as regras é a receita não só para garantir um produto de qualidade, mas para conquistar a exigente clientela, formada por renomados profissionais da culinária. Guilherme Ferreira, por exemplo, vende seu queijo premiado para chefs como Henrique Fogaça, Alex Atala e Rodrigo Oliveira, do restaurante Mocotó. Mas, até conseguir esse feito, ralou muito. As primeiras produções foram vendidas pelo Mercado Livre. “Mandei queijo até para o Acre.” 

Para ter escala, resolveu participar de eventos de gastronomia para conhecer chefs de cozinha e colocar seu queijo dentro dos empórios. Foi aí que ganhou a medalha de prata na França. “Foi um boom. Hoje trabalho com fila de espera de dez dias”, diz ele, que tem 32 mil seguidores no Instagram.

Mas nem todos os produtores na Serra da Canastra vivem a “gourmetização” do queijo. A região tem 793 fabricantes. Desses, só 52 são associados da Aprocan e são obrigados a seguir as regras de forma rígida. A diferença é que, enquanto os associados vendem seus queijos a R$ 50 ou R$ 75 a peça, por terem certificação, os demais só conseguem R$ 15 por peça por meio de atravessadores.

Carlos Augusto Vidote, de 35 anos, nasceu em Belo Horizonte e fez carreira na capital mineira. Mas ele sempre teve uma relação muito próxima com São Roque de Minas, cidade natal do pai e onde ele passava os feriados. Quando começou a trabalhar na área comercial, sempre que passava pela Serra, comprava um queijo para dar de presente aos clientes. Tempos mais tarde, no início dos anos 2000, o pai comprou umas terras na cidade e também começou a produzir queijos. “Nessa época, não conseguia enxergar o negócio como uma fonte de renda, mas já era uma cultura que me fascinava.”

Na capital mineira, o trabalho de Vidote começou a se tornar frustrante. Até que um dia um colega o convidou para trabalhar numa fábrica de queijo ralado em São Roque. De mudança para a cidade, ele decidiu dividir seu tempo entre o emprego fixo na fábrica e a modernização da queijaria do pai para adequá-la à legislação. Depois de construir novas instalações, ele criou uma marca para o queijo que agora se chama Don’Antonia – uma homenagem a mãe. Hoje ele produz 17 queijos por dia, e o preço que antes era de R$ 10 – vendido via atravessadores – agora já chega a R$ 50 a peça. “Entendi que quero viver disso. Estou aqui por que quero. Eu escolhi a produção do queijo”, diz Vidote, que conseguiu convencer a mulher a deixar a vida da cidade grande para fabricar queijo (O Estado de S.Paulo, 7/1/18)

Tradição aprendida aos cinco anos

Foram 16 anos sem fabricar uma única peça de queijo. Desde que o pai morreu, no fim da década de 90, Carlos Henrique Soares preferiu vender o leite a fabricar o queijo. Não era por falta de gosto, mas por uma questão financeira, já que o preço do queijo era muito baixo. “Naquela época não valia nada.”

Na sua família, a tradição começou com o bisavô. Soares lembra que, aos cinco anos, aprendeu com o avô a fazer o “merendeiro” (queijo menor e mais baixo que o tradicional) para vender. “Ele fez um banquinho para eu alcançar a bancada. Foi aí que tomei gosto pela coisa”, conta Soares, que voltou a fazer queijo em julho de 2015.

Nessa época, o filho Henrique Vieira Soares estava estudando em Bambuí, cidade vizinha de São Roque de Minas, e voltava só nos fins de semana. Foi nessas idas e vindas que o filho também se encantou pela tradição. Contra a vontade dos pais, ao fim do curso técnico de agropecuária, ele decidiu ficar na fazenda e abandonar – pelo menos por ora – os planos de estudar veterinária. “Fui criado aqui e tenho muito orgulho disso tudo”, afirma Henrique, que hoje tem 18 anos e ao lado do pai é responsável pela produção do queijo Capão Grande, já reconhecido em vários locais do País.

Enquanto o marido e o filho ficam na produção, Solange Vieira Soares, de 49 anos, é a “cabeça” por trás do marketing e das vendas do queijo canastra. Professora, ela tirou licença de dois anos em 2015 e está prestes a voltar ao trabalho. “Mas ainda não sei se quero retomar a profissão. Gostei muito desse universo.”

Ela conta que o queijo Capão Grande começou a ganhar visibilidade por acaso. “Um dia o dono de um novo empório de Campinas errou o caminho e bateu aqui na fazenda procurando o Zé Mário (um dos produtores mais tradicionais da região). Eu aproveitei e disse que também vendíamos queijo. Ele experimentou e disse que voltaria. E voltou. Desde então estamos crescendo”, diz Solange, que montou na fazenda um agradável ambiente para receber os turistas que aparecem por lá para comprar queijo (O Estado de S.Paulo, 7/1/18)

Em três meses, um prêmio internacional

Legenda: Soares ficou 16 anos sem produzir o queijo

Silva, de 35 anos, começou a produzir o queijo canastra em março de 2017 e, em junho, já havia ganho uma medalha de prata no mundial da França. O queijo premiado foi feito na antiga queijaria usada pelo avô, antes de Silva fazer novas instalações de acordo com a legislação atual. “O queijo sempre foi a principal fonte de renda dos meus avós, apesar de que, naquela época, não era tão valorizado como é hoje em dia”, conta ele.

O produtor diz que, antes de morrer, aos 90 anos, o avô transferiu toda a administração para os netos. Mal sabia ele que os herdeiros iriam tão longe com o tradicional queijo de leite cru, mesmo tendo passado a vida toda ensinando aos netos o processo de produção. Na infância, a fabricação do queijo fazia parte das brincadeiras – era comum os avós incentivarem os netos a fazer os próprios “queijinhos” para comerem no lanche.

Silva nasceu em Campinas, no interior de São Paulo, mas sempre morou em São Roque de Minas. Ele e os irmãos se mudaram para Lavras, na região do Campo das Vertentes (MG), para cursar Agronomia. Depois veio o mestrado em Viçosa (MG). “Nessa época, a gente vinha para São Roque apenas nas férias e nos feriados.” Só em 2010 Silva voltou para a cidade, onde chegou a exercer a profissão. Mas, em seguida, já começou a produzir o queijo. “Sempre tive vontade de ter uma queijaria minha, mas o produto não era valorizado.” 

O prêmio na França foi o empurrão que Silva precisava para entrar de vez no setor e lançar o seu queijo, o Capela Velha. Mas, ao contrário do avô, que sempre vendia o queijo canastra ainda fresco (o que dava menos valor ao produto), decidiu comercializar o queijo curado, mais caro. Hoje, ele produz 20 peças de queijo por dia e tem planos para aumentar esse número para 25 a 28 peças. “Minha preocupação é manter a história da fazenda e da família, porque aqui todo mundo sabe fazer queijo. A diferença está na história de cada um” (O Estado de S.Paulo, 7/1/18)