02/05/2023

Quem lucra com o sofrimento no campo? – Por Kátia Maia e Gustavo Ferroni

Quem lucra com o sofrimento no campo? – Por Kátia Maia e Gustavo Ferroni

trabalho rural com pleno respeito ao ser humano.- Foto Blog A Lavoura

 

Por Kátia Maia e Gustavo Ferroni

As empresas e o País só tem a ganhar garantindo modelos de trabalho rural com pleno respeito ao ser humano.

O agronegócio brasileiro vai bem, obrigado. Seus trabalhadores e trabalhadoras, nem tanto. Na verdade, quem planta e colhe o que consumimos nos supermercados dos grandes centros urbanos – seja em São Paulo, Belo Horizonte, Londres ou Madri – vai de mal a pior. Enquanto as 100 maiores empresas do agronegócio do País tiveram faturamento de R$ 1,38 trilhão em 2021 e lucraram mais de R$ 816 bilhões no ano seguinte, os trabalhadores e trabalhadoras rurais seguem sendo mal pagos. Quem está na cadeia de produção da fruta como safrista, por exemplo, figura entre os 20% mais pobres do País. Ou, como temos visto, são submetidos ao trabalho análogo à escravidão, em condições degradantes.

Na última semana de fevereiro, mais de 200 trabalhadores foram resgatados em produtoras de vinho e suco de uva de Bento Gonçalves, na serra gaúcha. Na primeira semana de março, 14 foram encontrados em grave situação numa fazenda de café no norte de Minas Gerais. No total, já foram resgatadas somente este ano, no Brasil, 523 vítimas de trabalho análogo à escravidão. Em 2022, 2.575 pessoas foram resgatadas, maior número desde 2013 (2.808), segundo o Ministério do Trabalho e Emprego. E já ultrapassamos a triste marca de 60 mil desde a criação dos grupos especiais de fiscalização móvel (base do sistema de combate ao trabalho análogo à escravidão no País), em 1995.

Embora seja parte de uma pauta global, a agenda dos direitos de homens e mulheres que sobrevivem do campo ainda encontra falta de apoio e entraves da própria cadeia de alimentos de grandes supermercados e outras empresas, que muitas vezes ignoram sua responsabilidade em fazer valer suas políticas corporativas e mecanismos para garantir os direitos de trabalhadores rurais envolvidos na produção. Essas grandes empresas têm o poder necessário de influência política e econômica para contribuir decisivamente para a luta contra essa grave violação dos direitos humanos.

E engana-se quem pensa que o problema é pontual desta ou daquela região, empresa, setor. Não. O problema é estrutural no Brasil. E revela mais uma face do racismo. Cerca de 80% dos trabalhadores resgatados em 2022 declararam-se negros (pretos ou pardos). Os maus tratos e todo o contexto de desumanização aplicados a essas pessoas vêm desde os tempos da escravidão, quando a exploração da mão de obra de milhões de negras e negros era o padrão da agricultura brasileira.

Mesmo com a denominada abolição da escravidão, em 1888, somente 100 anos depois os trabalhadores rurais conquistaram os mesmos direitos trabalhistas que os trabalhadores urbanos, com a promulgação da Constituição de 1988. No entanto, a legislação vigente não impede a ocorrência de violações aos direitos humanos de quem trabalha no campo.

Temos no Brasil inúmeras iniciativas pioneiras, ferramentas e instrumentos para lidar com essa violência, mas ainda assim ela persiste. Muito em razão da inoperância do Estado em realizar ações regulares – creditada à falta de dinheiro por causa de cortes orçamentários, mas também à ausência de vontade política, principalmente à que assistimos nos últimos quatro anos.

No final do ano passado, uma série de propostas foi entregue ao grupo de trabalho do então governo de transição pelo presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras Assalariadas Rurais (Contar), Gabriel Bezerra dos Santos. O documento, que contou com contribuições de diversas organizações, entre elas a Oxfam Brasil, indicava o que deveria ser feito prioritariamente nos primeiros 100 dias do governo Lula. Alguns dos pontos:

* Declarar a erradicação do trabalho análogo à escravidão como prioridade do Estado brasileiro;

* Fortalecer o Ministério do Trabalho e Emprego e promover uma política de emprego eficaz e de proteção dos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras, de maneira inclusiva e compatível com os direitos humanos;

* Fortalecer e dar maior transparência à Lista Suja – cadastro de empregadores que submeteram trabalhadores ao trabalho análogo ao de escravo –, reconhecendo a importância da ferramenta, dando maior publicidade às informações disponibilizadas por ela;

* Fortalecer o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, garantindo orçamento necessário para a realização de todas as ações necessárias para o combate ao trabalho análogo à escravidão;

* Combater a impunidade, garantindo a investigação e aplicação de sanções em caso de resgate de pessoas em situação de trabalho escravo análogo à escravidão, e proibir a concessão de subsídios, incentivos fiscais e financiamentos públicos a infratores.

Além disso, devemos lembrar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos reconhece a formação de sindicatos e a negociação coletiva como um direito humano. Pesquisas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostram que onde há negociação coletiva os salários são mais altos. É importante que o governo brasileiro reconheça e valorize o papel dos sindicatos na garantia dos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras e estimule o diálogo social como forma de pacificar as relações no campo.

O Brasil não pode admitir situações de trabalho análogo à escravidão. É preciso repudiar a mentalidade arcaica e violadora de direitos daqueles que se valem do trabalho de milhões de trabalhadoras e trabalhadores rurais para obter grandes lucros – aqui e no exterior – sem garantir os direitos fundamentais dessas pessoas. As empresas e o País só têm a ganhar garantindo modelos de trabalho rural com pleno respeito ao ser humano (Kátia Maia e Gustavo Ferroni são, respectivamente, diretora-executiva da Oxfam Brasil e coordenador de Justiça Rural e Desenvolvimento da Oxfam Brasil; O Estado de S.Paulo, 1/5/23