03/07/2024

Retórica populista de Lula semeia a crise – Editorial Folha de S.Paulo

Retórica populista de Lula semeia a crise – Editorial Folha de S.Paulo

Frenesi verborrágico do petista alimenta incertezas e a alta do dólar, criando armadilha para o próximo chefe do BC.

São típicas da retórica populista a pretensão de personificar o interesse do povo, sempre tratado como massa amorfa e incapaz, e acusações contra supostos inimigos de tais aspirações. Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que nunca se afastou muito desse padrão, decidiu aprofundá-lo num recente frenesi de entrevistas e pronunciamentos.

"Eu não sou um presidente da República que está junto do povo. Eu sou o povo que está na Presidência da República deste país por conta de vocês", discursou Lula de modo quase caricatural no sábado (29), em São Paulo, ao concluir uma longa sequência de autoelogios.

Os inimigos escolhidos são, mais uma vez, o Banco Central e o mercado financeiro, que estariam envolvidos em uma conspiração para manter os juros elevados. "O que você não pode é ter um BC que não está combinando adequadamente com aquilo que é o desejo da nação", disse o petista na segunda-feira (1º), desta vez arvorando-se em falar em nome da nação.

Mesmo para um mandatário desde sempre amigo dos microfones, a escalada verborrágica dos últimos dias é evidente —foram ao menos oito entrevistas a veículos de comunicação e 13 discursos desde a semana retrasada. Já os objetivos não parecem tão claros, e os resultados são desastrosos.

Só nesse período, a cotação do dólar saltou 4,7%, segundo a taxa média calculada pelo BC, aproximando-se do patamar de R$ 5,70, o que tende a pressionar a inflação.

Pudera: em 16 dias, Lula indicou que espera do próximo chefe do BC mais alinhamento a seus desígnios, desautorizou medidas de controle de despesas públicas aventadas por sua equipe e, nesta terça (2), disse que o governo fará "alguma coisa" contra a alta do dólar.

Não há lógica no falatório. Os quatro diretores indicados pelo governo petista ao BC votaram pela interrupção da queda dos juros, amparados por argumentação técnica. A desvalorização do real só torna ainda mais difícil retomar o corte das taxas.

O mercado, ambiente no qual se formam preços, reage às incertezas alimentadas por Lula quanto às contas públicas, a autonomia da política monetária e o controle da inflação. Intervir nesse movimento, sem estancar suas causas, será inócuo na melhor das hipóteses.

Em menos de seis meses, Roberto Campos Neto deixará o BC e não servirá mais de bode expiatório para as mazelas da economia. Na toada de hoje, seu sucessor corre risco de assumir em um cenário hostil, de impacto do câmbio na inflação e perda de credibilidade.

A piora das condições financeiras, cedo ou tarde, chega à produção e ao emprego, e os mais atingidos são os pobres em cujo nome pretende falar o populismo (Editorial Folha, 3/7/24)