Sem sorrisos com Lula no G20, Milei se encaminha para rir por último
O presidente Argentino e Lula durante foto na cúpula do G20, no Rio de Janeiro. Foto PR - Via Reuters
Ajuste fiscal na Argentina surpreende e começa a gerar resultados, enquanto Brasil patina
O contraste entre os sorrisos fotogênicos dispensados pelo presidente Lula aos líderes mundiais na cúpula do G20 e a sisudez com que recebeu o presidente argentino, Javier Milei, chamou a atenção no início da semana no Rio. Afinal, Milei já havia qualificado Lula no passado como um "comunista corrupto".
Mas, liturgia de cumprimentos em cúpulas à parte, é o desempenho da economia do país vizinho que vem despertando o interesse na praça financeira global.
Ao contrário do Brasil de Lula, que arrasta uma decisão sobre colocar suas contas em ordem —com efeitos deletérios sobre dólar, inflação e juros, que voltaram a subir—, a Argentina de Milei surpreende positivamente desde que ele assumiu, em dezembro do ano passado.
Na política, ele vê seu partido, o Liberdade Avança, à frente nas pesquisas para as eleições legislativas de outubro de 2025, cruciais para assegurar apoio do Congresso a suas medidas —em algumas sondagens, chega a estar quase 20 pontos à frente do peronismo.
A oposição inicial do argentino no G20 aos desejos de seu anfitrião em pontos relacionados à igualdade de gênero e clima também parece ter sido estratégica: um recado de não alinhamento a agendas que contrariam as posições do presidente eleito dos EUA, Donald Trump, de quem Milei espera ajuda extra em 2025.
Nos primeiros dez meses deste ano, a Argentina acumula superávit primário (sem contar juros da dívida) de 10,3 trilhões de pesos (R$ 59,5 bilhões), ante um déficit de 2,9 trilhões (R$ 16,7 bilhões) no mesmo período do ano passado.
No projeto orçamentário de 2025, o país calcula encerrar este ano com superávit equivalente a 1,5% do PIB. Em 2025, ele seria de 1,3%. Como comparação, a meta do Brasil neste ano para o indicador, ainda difícil de ser alcançada, é zero.
A virada de chave nas contas públicas argentinas é resultado de um rigoroso ajuste fiscal implementado por Milei, com cortes de subsídios em vários setores da economia e enxugamento da máquina pública.
Com as contas caminhando para o superávit, a Argentina viu a pressão sobre o dólar (um refúgio em momentos de incerteza) recuar, e, com ela, os índices de inflação. Em outubro, os preços avançaram 2,7%, menor taxa em três anos e cerca de um décimo dos 25% registrados em dezembro de 2023.
No mercado financeiro, a Bolsa de Buenos Aires apresenta desempenho excepcional, com valorização superior a 130% desde que Milei assumiu.
O dólar, entranhado no dia a dia argentino, há um ano exibia diferença de 150% entre a cotação oficial e no mercado paralelo. Nesta semana, a disparidade estava em pouco mais de 10%. É um claro indicativo da volta da confiança no peso. O chamado risco-país argentino, um indicador de solvência, despencou ao longo de 2024.
É fato que a taxa de pobreza na Argentina aumentou. Atingiu, ao final do primeiro semestre, 53% da população (11,2 pontos a mais em relação ao mesmo período do ano anterior). Mas o cálculo leva em conta uma barra mais elevada que a brasileira.
Em agosto, uma família de quatro pessoas ficava acima da linha de pobreza se recebesse cerca de 940 mil pesos, o equivalente a R$ 5.450 (US$ 940). No Brasil, o Ibre FGV, por exemplo, considera na pobreza pessoas com rendimento domiciliar per capita abaixo de R$ 667 mensais. Em uma família de quatro, a renda seria de R$ 2.668 (US$ 463, menos da metade do corte argentino).
O Banco Mundial projeta queda do PIB argentino neste ano de 3,5% por conta do forte ajuste, mas um crescimento robusto de 5% em 2025.
Na trilha do ajuste, porém, as contas externas são o ponto fraco de Milei, pois a Argentina é hoje o maior devedor do Fundo Monetário Internacional e tem uma série de débitos vultosos vencendo nos próximos anos.
Em 2018, durante o governo liberal de Mauricio Macri (2015-2019), Trump foi fundamental para garantir um empréstimo recorde do FMI de US$ 56 bilhões aos argentinos. Quatro anos depois, o pacote foi reestruturado para US$ 44 bilhões e agora depende de novas revisões para que a Argentina tenha acesso aos dólares de que tanto precisa.
Com reservas cambiais no vermelho estimadas em cerca de US$ 4,5 bilhões, o país tem compromissos de US$ 14 bilhões com credores internacionais vencendo no começo de 2025 e, assim, espera contar novamente com uma mão de Trump para chegar a um bom termo com o FMI.
Milei foi um apoiador de primeira hora da nova candidatura Trump e se esforça para se alinhar ao republicano. Se persistir no ajuste e conseguir nova ajuda do americano no FMI, o argentino pode estar a caminho de rir por último enquanto o Brasil segue se debatendo para ajustar suas contas (Folha, 23/11/24)