25/01/2021

Só 23% da produção do campo brasileiro usa internet

Maior parte das pequenas e médias propriedades rurais do País ainda não está contectada na operação agropecuária e não dispõe de processos tecnológicos.

 

Albeni José Meireles investiu R$ 200 mil em um pivô de irrigação que não funciona por falta de infraestrutura de energia na região. Foto DIDA SAMPAIO/ESTADÃO

 

O produtor rural Albeni José Meireles, de 49 anos, tomou a decisão de dar seu primeiro passo rumo à automatização da lavoura de 44 hectares, na zona rural de Luziânia, cidade goiana a 57 quilômetros de Brasília, onde seus pais fincaram raízes. Após dois anos fazendo economias e negociando com a empresa local de energia, montou um pivô de irrigação. A tecnologia não existe nas outras pequenas propriedades do entorno. Ele estava convicto de que o pioneirismo se converteria em segurança nas estiagens e ganhos.

Sem a infraestrutura pública para ligar o equipamento à rede de energia, o equipamento de 190 metros de comprimento não passa hoje de um prejuízo de R$ 200 mil. Da janela de casa, Meireles contempla o paradoxo do pivô, seco, estacionado sobre o milho que sofre com a falta de chuva. “Abri mão de parte da minha renda para montar e até agora nunca pude usar”, desabafa. “Queria ter mais rentabilidade e um futuro melhor para a minha família.”

Incrementar a tecnologia na propriedade não tem sido vantajoso para Meireles. A internet banda larga que contratou logo foi interrompida. Uma lavoura de eucalipto bloqueou o sinal e o provedor abriu mão de providências. A conexão veloz poderia facilitar pesquisas, dar acesso a novos fornecedores e permitir uma formação melhor aos quatro filhos. “A gente precisa ver preços, pesquisar equipamentos. E meus meninos, na pandemia, precisam para estudar”, observa.

Os obstáculos, como os enfrentados por Meireles, para um campo mais tecnológico fazem com que apenas 23% dos agricultores tenham acesso à internet em toda a operação agrícola, segundo  pesquisa da McKinsey & Company. O número cai para 13% em alguns segmentos, como o de algodão e o de grãos em algumas regiões.

Outro levantamento sobre tendências, desafios e oportunidades para a agricultura digital, feito em parceria entre Embrapa, Sebrae e Inpe, mostrou que 57,5% dos produtores têm alguma rede social, incluindo o WhatsApp, e a usam para obter ou trocar informações sobre a propriedade. O estudo, no entanto, revela que a inserção tecnológica, em geral, não acompanha as etapas mais profundas dos processos produtivos.

Além da agropecuária de grande escala, que responde pela maior parcela da riqueza produzida pelo País, é um Brasil rural pobre e médio, alicerçado em técnicas primitivas, que produz o alimento que vai parar nas mesas das famílias. País afora, milhões de pequenos produtores têm na vida enraizada no campo o único incentivo para encarar a desigualdade e o atraso tecnológico.

Dos 5 milhões de estabelecimentos rurais no Brasil, 76%, isto é, 3,8 milhões, não dispõem de processos tecnológicos de produção e escoamento da safra. O levantamento da reportagem levou em conta estudo da Embrapa que aponta que dos 3,8 milhões de estabelecimentos que geram renda, 2,5 milhões (ou 67%) são propriedades consideradas pobres, geridas especialmente por famílias dissociadas de grandes federações do setor e dos processos de modernização, e com renda mensal inferior a dois salários mínimos (hoje, R$ 2.200).

 

2,5 milhões

de um total de 5 milhões de estabelecimentos rurais geram renda mensal de até 2 salários mínimos. Essa fatia mais pobre responde por apenas 3,2% do valor bruto da produção  



O número pode ser ainda maior porque não considera 1,2 milhão de propriedades que não declararam produção ou nada produziram. Na outra ponta, não chega a 25 mil o total de estabelecimentos que geram 52% do valor bruto da produção agrícola. São as fazendas exportadoras, com renda mensal superior a 200 salários mínimos (R$ 220 mil).

A produção rural ocupa e emprega cerca de 15 milhões de pessoas, com média aproximada de quatro trabalhadores por propriedade que declara renda. O recorte evidencia que uma vasta proporção de trabalhadores rurais vive com pouco e depende de auxílios. Eles são pequenos produtores de hortaliças, frutas ou com pequenas criações de animais que, em geral, permanecerão com possibilidades restritas.

 

24,7 mil

estabelecimentos são responsáveis por 52% do valor bruto do agronegócio  



Gargalos começam no acesso à energia

Os 70 litros de leite que diariamente saem a 37º C das vacas do produtor goiano Elzo Rodrigues de Paula, de 60 anos, são colhidos de maneira milenar, também em Luziânia. A principal tecnologia da propriedade só foi conquistada em 2020, após anos recorrendo à armazenagem de vizinhos. Um tanque de R$ 5 mil mantém o líquido refrigerado a cerca de 3º C, até ser recolhido, processado e vendido por uma cooperativa. Ordenhas automáticas não fazem parte dos planos.

O tanque de leite finalmente poupou os deslocamentos diários a cavalo, pela estrada de chão, do senhor de mãos calejadas. O milho que vira a silagem que alimenta o gado também depende do suor diário de Elzo, que vive com a mulher e a filha caçula em uma casa simples em um terreno de 18 hectares.

Elzo Rodrigues de Paula faz a ordenha manual para extrair 70 litros de leite por dia.DIDA SAMPAIO/ESTADÃO

Na pequena propriedade, no coração do rico Centro-Oeste brasileiro, a pandemia ofereceu amostras do êxodo com o qual velhos ruralistas precisam lidar. A filha mais nova, de 12 anos, passa temporadas com a mais velha, de 22, em Brasília, para poder fazer as atividades escolares online. Na propriedade, a rede móvel não é boa e a televisão pifou. Está há meses sem funcionar.

Ele sabe que as meninas poderão buscar uma vida melhor longe dali, onde o auxílio do poder público local, com ensiladeiras e até com parte da comida do gado faz falta. "Para a gente ter um melhoramento tem que ter um dinheiro fácil para pegar e aplicar. Por exemplo, conseguir um financiamento com juro baixo. Não está tendo dinheiro para gente", reclama.

 

23%

dos produtores rurais do País têm acesso completo à internet em toda a operação agrícola



Gargalos tecnológicos não afetam somente os microprodutores. Aos 36 anos, Fernando Meireles Bueno é considerado por pequenos agropecuaristas do entorno de Silvânia e Luziânia um fenômeno da produção leiteira. As 12 vacas compradas pelo pai em 2007 hoje são 100 produzindo cerca de 42 mil litros por mês.

No caso de Bueno, o problema tecnológico está imbricado com o da energia. Para alcançar os resultados que renderam o reconhecimento, ele precisa lidar com apagões de 30 horas que queimam equipamentos e exigem gastos extras com um gerador alimentado a diesel. A imprevisibilidade frustra o produtor que se orgulha do cuidado com cada real de despesa. “Temos sempre que estar aprendendo. Uso YouTube, às vezes temos cursos, por exemplo, sobre mastite de vaca, doença que já chegou a me custar R$ 2 mil por mês. Tem hora marcada para entrar e assistir. Tendo energia, tem internet. Só que não tendo energia você não tem nada”, diz Fernando.

“Tendo energia, tem internet. Só que não tendo energia você não tem nada” - Fernando Meireles Bueno, produtor de leite

Nos 24 hectares que reserva para pastagem, todo o controle do gado, do cruzamento de espécies e até da produção individual das vacas é feito em um caderninho amarelado de folhas desfalcadas. A tarefa toma tempo, é suscetível a falhas, mas não pode ficar à mercê da falha da energia. Bueno sonha com os recursos e com a infraestrutura que um dia lhe permitirão abrir mão do caderninho e ganhar tempo com robôs que distribuem as rações corretamente e registram as produções em bancos de dados.

A menos de seis horas de onde estão o pivô desativado de Meireles, o gerador de Bueno e o tanque de Elzo, o governo de Goiás fez, em dezembro, um lançamento da rede móvel 5G para o agronegócio. Em parceria com a chinesa Huawei, drones e robôs capazes de varrer lavouras de forma autônoma em busca de ervas daninhas e direcionar a aplicação de herbicidas foram colocados para monitorar uma fazenda de soja no município de Rio Verde. As imagens coletadas pelas máquinas no campo eram transmitidas em tempo real em telões montados na área do evento, com a presença de políticos.

O fazendeiro Cairo Arantes, primeiro a experimentar a tecnologia no País, comemorou o sistema que poderá lhe render mais eficiência e economia. Cadeirante, ele também pôde testar um óculos de realidade virtual que mostrava o campo de soja conforme os movimentos da cabeça. “Serve para qualquer produtor ter informação na hora, em tempo real. Ajuda a tomar decisões mais rápidas e a fazer seu negócio ser rentável”, disse Arantes. Apesar dos resultados na produção pecuária e de soja que o levaram a ter destaque regional, o fazendeiro aproveitou a oportunidade para uma reclamação tecnológica. “Eu não consegui colocar a energia trifásica ainda, estou no processo, e o 5G já chegou”, pontuou, colhendo aplausos em apoio de parte dos presentes. “Aproveitei a deixa.”

Produtor de leite em Luziânia (GO), Fernando Meireles Bueno enfrenta a falta de energia e faz o controle da produção em um velho caderno Foto DIDA SAMPAIO/ESTADÃO

O homem que está por trás das pesquisas que possibilitaram o avanço do agronegócio do País, a partir dos anos 1970, hoje é o principal autor de estudos que ressaltam de forma concreta que uma parte relevante do setor agropecuário não foi contemplada com o progresso. Aos 90 anos e com seis décadas dedicadas à extensão rural, Eliseu Roberto de Andrade Alves é o “pai da Embrapa”, na definição do ex-ministro Delfim Netto, e se dedica a estudos sobre a pobreza no campo.

Atribuem-se mais de 60% do crescimento agrícola nos últimos anos à melhora tecnológica, que não é restrita à utilização de maquinário moderno. Desenvolvimento de sementes, acesso a insumos com preços menores, sistemas para venda com preços competitivos, meios para escoamento das produções, formação educacional de produtores e mecanismos para acesso rápido a crédito também fazem parte.

 

59%

é a porção de produtores rurais que usam redes sociais como o WhatsApp para obter informações sobre a produção



A dinâmica de alguns desses itens forma o que Alves chama de “imperfeições de mercado” que penalizam os milhões de pequenos. Estes acabam comprando insumos mais caros e vendem a preços mais altos. Assim, têm dificuldades em incorporar tecnologias, e a desigualdade se aprofunda. “A tecnologia só é adotada se for lucrativa. Com essa diferença de preços, a tecnologia que está tocando os grandes produtores, levando a agricultura brasileira a salvar a economia brasileira acaba não sendo adequada aos pequenos. Ela não traz lucro não pela tecnologia em si, mas pelas imperfeições do mercado”, analisa.

Para o especialista, a desigualdade tende a piorar, mantendo milhões de famílias de pequenos produtores em condições adversas. “Têm algumas políticas do governo, mas o que acontece basicamente é que a solução ainda não é suficiente para colocar os pequenos produtores para adotarem tecnologias e seguirem no caminho da grande produção. É um desafio a vencer: integrar na agricultura moderna os milhões de produtores que ainda estão à margem”, frisa.

Ilha de excelência em Minas Gerais

As características da produção no Jaíba, município no norte de Minas Gerais, próximo à Bahia, ensinam que pequenos produtores podem ter papel significativo na economia e no desenvolvimento regionais. Os cerca de 100 mil hectares são resultado de um projeto de agricultura irrigada iniciado ainda nos anos 1970 e que definiu as estratégias do que virou a capital mineira do agronegócio, com destaques em produção de banana, limão e manga.

Pequenos produtores do Jaíba, em Minas, exportam seus limões para Alemanha e Inglaterra. Foto MARLON JARDIM/AFRUTJÁ (MG)

Pequenos, médios e grandes produtores se auxiliam, e os menores saem favorecidos com tecnologia, expertises e infraestrutura. “Existe uma estrutura de apoio a ele em termos de orientação tecnológica. Com o passar dos anos, eles vão se tornando autossuficientes e profissionais. Era isso que se queria há mais de 40 anos”, afirma Elias Teixeira Pires, consultor em agronegócio e produtor.

Teixeira Pires ressalta, porém, que experiências como a do Jaíba, semelhantes também às das regiões de Petrolina (PE) e de Juazeiro (BA) são exceções. "O Jaíba tem uma organização de pequenos produtores que demonstra claramente o avanço com o uso da tecnologia. Mas isso é pequeno comparado com o Brasil como um todo. É expressivo regionalmente", comenta.

O limão que nasce nas terras do Jaíba, em propriedades pequenas de até 25 hectares, vai parar na Alemanha e na Inglaterra. No mercado interno, os cerca de 26 produtores da Associação União dos Fruticultores do Jaíba e Região conseguem cerca de R$ 10 pela caixa, com 25 kg. Na Europa, R$ 40.

“O Jaíba tem uma organização de pequenos produtores que demonstra claramente o avanço com o uso da tecnologia. Mas isso é pequeno comparado com o Brasil como um todo” - Elias Teixeira Pires, consultor em agronegócio

O representante da associação, Marlon José Meira Jardim, conta que o perfil associativista e cooperativista dos produtores permite com que, juntos, se desenvolvam, contratem tecnologia e mantenham padrões de qualidade que seduzem consumidores que pagam mais caro pelo limão.

Embora pequenos, eles têm um aparato tecnológico à disposição, desde provetas para medir defensivos com precisão, medidores de pH e pulverizadores atomizados que economizam gastos e mantêm a fruta cítrica dentro dos padrões ambientais,  econômicos e sociais exigidos no mercado externo. "Quando você tem melhor rentabilidade, você começa a melhorar a tecnologia. A aspersão vira microaspersão, mais eficiente, você melhora o pulverizador.  Uma coisa vai puxando a outra", diz.

Alerta para o Brasil

A falta de foco em avanço tecnológico nas pequenas e médias propriedades rurais não põe em risco, aparentemente, o espaço obtido pelo agronegócio brasileiro no mercado internacional, baseado nas commodities. Mas expõe uma clara oportunidade desperdiçada de avançar em muitos setores do comércio agrícola externo. De tabela, o País ignora debates de problemas como o êxodo rural, o empobrecimento de municípios do interior e mesmo conflitos de concentração de terra e assentamentos sem conexão com a rede de comercialização.

Representantes da Embrapa argumentam haver escassez de dados que possam comparar a modernização tecnológica dos pequenos produtores brasileiros com os dos demais países. Eles dizem que alguns dados disponíveis indicam que o quadro não é tão negativo. O próprio levantamento da McKinsey & Company revela que 36% dos agricultores brasileiros fazem compras online, contra 24% dos Estados Unidos. Por outro lado, o cenário é um alerta ao setor que segura a economia nacional. O agro é influenciado pela geopolítica e lida com investidas de estrangeiros para redução de importações e para parcerias mais vantajosas.

Legenda: Carência tecnológica vem estrangulando os pequenos produtores de suínos no Brasil e aprofundando a concentração de renda. Foto KIKO SIERICH/ESTADÃO

Na pecuária, tecnologia e incentivos tornaram a Rússia autossuficiente na produção de suínos. Até 2019, o país era o quinto principal destino dessa carne produzida no Brasil. Em 2020, a transição não afetou a produção brasileira porque a China dobrou a demanda. Contudo, uma análise mais detida da suinocultura brasileira mostra como a carência tecnológica vem estrangulando pequenos e aprofundando a concentração de renda.

Em Santa Catarina, maior exportador brasileiro, a produção saltou de 229 mil para 682 mil toneladas entre 1985 e 2006. Em contrapartida, o número total de produtores caiu da faixa dos 35 mil para a casa dos 12,5 mil. O novo passo da Rússia pode contribuir para aprofundar o abismo dos menores criadores.

O mesmo fenômeno de limitação aos pequenos é observado em subsetores que antes eram típicos dos pequenos produtores, como hortigranjeiros. O risco de aprofundamento da desigualdade é apontado pela própria Embrapa. No planejamento da entidade para 2030, o alerta: a tendência é a de que o quadro se torne irreversível. “Essas tendências vêm caracterizando o desenvolvimento agropecuário brasileiro em praticamente todos os seus subsetores. Nos próximos anos, esse movimento de concentração da produção (e da riqueza em geral) no campo brasileiro continuará sendo observado ainda mais, tornando-se uma tendência irreversível”, destaca o documento. “E, sem dúvida, esse processo econômico concentrador produz implicações diretas para a ação governamental, incluindo a pesquisa agrícola, e também para a disseminação das novas tecnologias."

“Esse movimento de concentração da produção (e da riqueza em geral) no campo brasileiro continuará sendo observado ainda mais, tornando-se uma tendência irreversível” - Planejamento da Embrapa para 2030

Na agricultura, após comprar briga com a soja brasileira, o presidente da França, Emmanuel Macron, lançou um pacote de incentivos aos pequenos produtores franceses. Serão 100 milhões de euros para aumentar a produção de proteína vegetal em 40% em três anos. Parte do investimento será obrigatoriamente revestido para pesquisa e tecnologia.

Especialista em planejamento estratégico do agronegócio e professor da USP e da FGV, Marcos Fava Neves critica a postura protecionista do governo francês. Reconhece que a iniciativa cria oportunidades para produtores franceses, com forte cooperativismo e compartilhamento de campos tecnológicos. Ele pondera, no entanto, que o caminho não é eficiente. “Acredito que a França pode ter sua política para produção própria. A França erra ao justificar essa política usando o Brasil, denegrindo a imagem do Brasil. É um gesto protecionista da produção local e que não deve usar vestes ambientais para justificar. Vai criar oportunidades a eles (aos pequenos produtores franceses) às custas dos contribuintes da França e da União Europeia”, frisa (O Estado de S.Paulo, 24/1/21)