Startups de energia verde vivem onda 2.0 de investimento no Vale do Silício
Legenda: Laboratório na QuantumScape, startup de baterias na Califórnia que abriu capital em 2020 e tem valor de mercado de US$ 21 bi - Gabriela Hasbun - 29.mar.2021/NYT
Clean techs ganham impulso e se valorizam após fracasso do primeiro ciclo, há uma década.
Martin Roscheisen um dia foi a vanguarda do setor de energia solar, comandando uma startup que contava com investimento dos fundadores do Google e que pretendia criar uma revolução verde ao tornar a fonte mais barata que a de combustíveis fósseis.
O empreendedor austríaco havia assistido ao ciclo de expansão e contração das primeiras companhias de internet, depois de estudar ciência da computação na Universidade Stanford com Larry Page e Sergey Brin, os fundadores do Google, e acreditava que a energia verde seria a próxima revolução a criar fortunas para os investidores do Vale do Silício.
“Mais e mais financistas do setor de capital para empreendimentos estavam reconhecendo a tecnologia limpa como categoria de ativos e começaram a investir nela”, diz. “O segmento se tornou altamente competitivo.”
Mas, embora a energia solar tenha vindo a se tornar a mais barata do planeta, o Vale do Silício pouco teve a ver com o fato. Em lugar disso, uma rápida expansão na produção chinesa de painéis solares, com apoio de Pequim, conduziu a uma queda de 80% no custo da energia solar em dez anos.
A startup de Roscheisen, que inventara alternativa aos painéis de energia solar de silício, faliu em 2013, e hoje ele dirige uma companhia que fabrica diamantes industriais.
Roscheisen foi parte da primeira onda de startups de energia limpa, que não conseguiram ganhar escala, enquanto Pequim esbanjava incentivos para beneficiar companhias chinesas de energia solar e eólica e fabricantes de baterias elétricas, depois da crise financeira.
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O setor de capital para empreendimentos perdeu metade dos US$ 25 bilhões que investiu no setor de energia limpa entre 2006 e 2011, de acordo com a PwC, o que o levou a redirecionar investimentos para desenvolvedores de apps, software e inteligência artificial, que eram capazes de crescer rapidamente sem a necessidade de volumes imensos de capital.
Mas o sucesso da China em ampliar a escala do setor de energia solar, e de promover reduções de custo semelhantes na energia eólica e nas baterias para carros elétricos, preparou o terreno para uma nova onda de investimento em startups de energia limpa, conhecida como “clean tech 2.0”.
De novas tecnologias de armazenagem para baterias a combustível de aviação sustentável, carne criada em laboratório e concreto produzido com baixas emissões de poluentes, os investidores estão correndo a aplicar dinheiro em produtores de energia renovável e outras companhias que combatem a mudança do clima. Dezenas delas lançaram ações nos EUA nos últimos 12 meses e arrecadaram bilhões de dólares.
A QuantumScape, startup de baterias sediada em San Jose, que abriu seu capital em 2020, tem valor de mercado de US$ 21 bilhões. As companhias cotadas em Bolsa que devem se beneficiar da transição para uma economia pós-combustíveis fósseis valem, somadas, US$ 6 trilhões, de acordo com o Bank of America.
Desenvolver uma tecnologia de laboratório até convertê-la em um produto de massa de baixo custo, que tenha o potencial de reduzir as emissões mundiais de poluentes, é notoriamente difícil e pode demorar anos, como muitos investidores descobriram no último decênio.
Mas os analistas dizem que desta vez a situação é diferente, porque o foco dos empreendedores está em um conjunto de desafios mais amplos, e eles contam com o apoio de investidores corporativos dotados de recursos generosos, dadas as promessas das grandes empresas de reduzir ou zerar suas emissões de poluentes.
Os compromissos assumidos por governos como o da China e os da União Europeia, de chegar a um total zero de emissões de gases causadores do efeito estufa até a metade do século, também ajudam a sustentar um mercado para essas empresas. O presidente Joe Biden também foi eleito com a promessa de um plano de US$ 2 trilhões em investimento na energia verde.
“O clima está afetando tudo, agora, e por isso as empresas expandiram sua visão, em lugar de concentrar seu foco em um setor (como o de energia solar)”, diz Sophie Purdom, investidora que responde pelo boletim Climate Tech VC.
“Sentimos o clima pessoalmente, agora; as empresas o sentem, a economia o sente. É uma bomba-relógio tiquetaqueando tangivelmente, enquanto no passado a impressão era que ele não passava de um gráfico em um slide de apresentação de Al Gore.”
Em uma palestra na TED em 2007, John Doerr, sócio da Kleiner Perkins, companhia de capital para empreendimentos do Vale do Silício, disse que “as tecnologias verdes —o investimento verde— são maiores que a internet e podem ser a maior oportunidade econômica do século 21”.
A Kleiner e outras empresas de capital para empreendimentos começaram a despejar bilhões de dólares em startups de energia solar e baterias como a A123 Systems, que colocou ações no mercado em 2009, com uma avaliação de mercado de US$ 1,9 bilhão.
A Solyndra, da Califórnia, que produzia painéis solares sem silício, obteve quase US$ 1 bilhão em capital, bem como um empréstimo de US$ 535 milhões do governo dos EUA.
“O melhor trabalho em energia solar está acontecendo no Vale do Silício”, disse o bilionário investidor local Vinod Khosla em 2008.
Mas uma disparada na produção da China, boa parte dela concentrada na região de Xinjiang, onde Pequim vem sendo acusada de abusos trabalhistas, mudou o quadro. Os preços mundiais do polissilício, matéria-prima usada em células solares, caíram rapidamente, e a necessidade de tecnologias inovadoras bancadas pelo capital para empreendimentos dos EUA desapareceu. Em 2015, a vasta maioria dos painéis em uso no planeta era fabricada na China.
Quase todas as empresas nas quais o Vale do Silício apostou faliram. A Hanergy, companhia de energia solar chinesa, adquiriu a promissora startup de energia solar MiaSolé, que contava com investimento da Kleiner Perkins, em 2013. Nas baterias, a A123 Systems foi adquirida pela chinesa de autopeças Wanxiang Group, por US$ 257 milhões.
“Foi realmente um processo de expansão e contração propelido pela alocação excessiva de capital para empreendimentos”, disse Rob Day, sócio da Spring Lane Capital, empresa do setor sediada em Boston.
Em 2010, depois de ser demitido da empresa que criou, Roscheisen comprou uma passagem só de ida para a China, a fim de estudar como o país havia conseguido competir com tamanho sucesso nas tecnologias de energia limpa.
Hoje, ele atribui a culpa pela derrota à tendência do Vale do Silício de se concentrar em jogadas do tipo “programa lunar”, que buscam avanços revolucionários em lugar de promover melhoras constantes nas tecnologias de ar limpo como efeito da produção cada vez maior.
Mas aqueles fracassos iniciais não desestimularam alguns dos investidores mais ricos do planeta. Em 2015, Bill Gates decidiu virar a maré de investimento. Na reunião de líderes mundiais que aconteceu por ocasião da conferência mundial sobre o clima, em Paris, naquele ano, ele enviou emails a amigos bilionários, como o fundador da Amazon, Jeff Bezos, e Richard Branson, convidando-os a criar a Breakthrough Energy, uma coalizão para investir em tecnologias de energia limpa.
Os dois fundos de capital para empreendimentos criados pela organização desde então arrecadaram mais de US$ 2 bilhões para investimento em startups de energia limpa, do hidrogênio ecológico à fusão nuclear, com o objetivo de ajudar o planeta a atingir a meta de um total líquido zero de emissões de poluentes em 2050. Luminares do Vale do Silício como Khosla e Doerr são parte do conselho.
Carmichael Roberts, um dos sócios-fundadores do fundo e no passado envolvido em empreitadas como a A123 Systems, disse que aprendeu com os erros anteriores e agora tem critérios rigorosos para investimento, e um horizonte mais longo, de 20 anos, para obter resultados.
O fundo só investe em startups que tenham o potencial de remover 500 milhões de toneladas anuais de gases causadores do efeito estufa da atmosfera a cada ano —o equivalente a 1% das emissões mundiais de poluentes.
“O espírito empreendedor é muito forte nesse ramo”, diz. “Se recordarmos a primeira onda de investimento em energia limpa, o número de setores envolvidos podia ser contado nos dedos de uma mão, enquanto agora o que temos é quase uma renascença.”
Na onda passada, o insucesso de muitas startups não aconteceu por problemas técnicos, mas por falta de opções de financiamento, ele disse. Desta vez, existe uma variedade maior de capital à disposição, diversas empresas de capital para empreendimentos e grandes empresas industriais que têm divisões de capital para empreendimentos.
No mês passado, a mineradora de ferro brasileira Vale investiu em uma das startups de Roberts, a Boston Metal, que pretende produzir aço com baixo uso de carbono.
Khosla, que manteve seu investimento no setor a despeito de algumas das companhias de energia solar em que ele investiu terem falido quando a China dominou o mercado, diz que algumas das startups da primeira onda se tornaram sucesso, como a Tesla, de Elon Musk, e que esse sucesso agora serve como modelo para outros empreendedores.
“Não acho que a onda ‘clean tech 1.0’ tenha sido um fracasso —ela correu de acordo com o modelo usual do ramo de capital para empreendimentos, sob o qual só uma da centena de companhias em que você investe dá retorno, mas da ordem de milhares de vezes o valor investido”, diz Khosla.
Essas tecnologias podem vir a criar companhias tão lucrativas quanto Google, Apple e Facebook, que se tornaram grandes investidores na tecnologia limpa, acredita Khosla. A dificuldade para o setor, na opinião dele, é que o tempo de desenvolvimento de seus produtos se assemelha aos da indústria farmacêutica.
Mas não há um grande mercado ou empresas estabelecidas interessados em adquirir tecnologias não comprovadas como o cimento produzido com baixo uso de carbono ou combustíveis alternativos para aviação, diz.
“As empresas estabelecidas de petróleo e gás natural tenderam a lutar contra as novas tecnologias, em lugar de aderir a elas imaginando que com isso poderiam se adiantar à curva”, ele diz. “Elas combatem as mudanças exatamente porque são assustadoras. Elas bancam centrais de produção de energia solar, mas não existe mais risco na energia solar e eólica; elas não assumem nenhum risco ao investir.”
Tanto Gates quanto Khosla tiveram fracassos recentes no setor. Eles investiram na Aquion Energy, uma startup cujo objetivo era criar uma bateria que usa água salgada; a empresa pediu concordata em 2017 e foi adquirida por uma companhia chinesa. Khosla também investiu na LightSail Energy, uma empresa de armazenagem de emergia pelo uso de ar comprimido criada pela cientista Danielle Fong, que pediu falência no mesmo ano.
“Temos de assumir riscos com produtos inovadores, mesmo que o fracasso seja possível”, disse Roberts.
“Não posso afirmar que, na energia limpa 2,0, o risco de fracasso tenha caído consideravelmente... Nós continuamos a assumir o mesmo nível de risco técnico, ou ainda mais, mas o risco sistêmico geral diminuiu.”
A necessidade premente de evitar o pior impacto da mudança do clima significa que o setor de energia limpa não pode arcar com um novo hiato dos investidores, de acordo com Andrew Beebe, diretor-executivo da Obvious Ventures, de San Francisco.
“Não acredito que haja um caminho que nos permitirá olhar para trás e dizer que a energia limpa 2.0 não funcionou”, diz Beebe, que começou sua carreira trabalhando para a Suntech, uma empresa de energia solar cuja divisão industrial faliu, em 2013.
Ele acrescenta que “isso não vai acontecer —a transição em que estamos, a estrada que seguimos, têm mão única. Não voltaremos aos veículos a gasolina, às usinas a carvão, ao ar sujo e às condições de vida insalubres, se tivermos escolha. E o que aprendemos nos dez últimos anos é que temos escolha” (Financial Times, 31/3/21)