STF é a caricatura do Brasil do faz de conta – Por Antonio Machado
É o país das sombras que alguns querem manter longe da luz do dia, disfarçando-se de protetores dos pobres e explorando a boa fé dos incautos. O STF reforçou essa percepção
Comédia jurídica
Entre uma eminência aqui, um eminente ali, profusão de data vênia, vossa excelência para cá e para lá, réu tratado pela expressão mais amena de paciente, o Supremo Tribunal Federal é a cara do Brasil do faz de conta – um nobre de ficção engalanado com roupas puídas.
A se pautar pelo que lá se discute e se sentencia, com compreensão confusa até pelos 11 ministros da Corte, não há segurança jurídica e ordenamento econômico confiáveis. As decisões sugerem mais de uma intenção, nem sempre pautadas pelo ícone da Justiça cega, portanto, igual para todos. E, no STF, dependentes do ministro sorteado para iniciar um julgamento. Em cada cabeça há uma sentença, apesar de a Corte suprema se obrigar a seguir a Constituição e nada mais.
Com a política judicializada e a Justiça politizada, tal como se tornou frequente dizer, embora ambos os eventos venham de longe e tenham alta correlação com o sistema de escolha dos juízes da Corte sempre pelo presidente da República, o STF vulgarizou a sua aura de infalibilidade e se apequenou (como a presidente do STF, ministra Carmen Lúcia, já disse) pela vaidade de seus membros.
Vaidade e pretensão de sapiência. Não fosse a decisão do colegiado de 11 ministros em 2006, ao declarar inconstitucional a cláusula de desempenho eleitoral aprovada em lei votada em 1995, não haveria a selva de partidos que impede a formação de maiorias programáticas no Congresso, enfraquece o presidente eleito e fomenta a corrupção por causa do loteamento do Estado nacional entre cabos eleitorais.
Cada vez mais indiferente à lógica que tais juízes gostam de citar em seus votos laudatórios, como enamorados da própria voz, o STF não se avexa em criar o que não prevê a Constituição. Foi o que fez o então presidente do STF, ministro Ricardo Lewandowski, ao criar o impeachment fatiado na votação do Senado que afastou Dilma Rousseff sem lhe cassar os direitos políticos. Não faltam esquisitices.
O mandato de senador foi devolvido a Aécio Neves, enquanto Eduardo Cunha acabou cassado pela Câmara depois de afastado pelo STF e hoje está preso. Na discussão sobre o esdruxulo habeas corpus preventivo pedido pela defesa do ex-presidente Lula contra a prisão depois de confirmada sua condenação por três desembargadores do TRF-4, o STF voltou a inovar: aceitou liminar preventiva dentro de outra liminar preventiva, o habeas corpus, livrando Lula da cadeia até a volta da corte em 4 de abril.
E por que não antes? Ah! Melhor não perguntar.
Eleição está sub judice
O início da temporada eleitoral está sub judice devido à incerteza sobre a inelegibilidade de Lula e à sua liderança nas pesquisas de intenções de voto. Com ele, tem-se um quadro político e implicações econômicas. Sem ele, o cenário é outro e não há nada resolvido.
Não há nada mais prioritário até para a frente que o apoia, atada ao destino de um nome impugnado segundo a Lei da Ficha Limpa. Mas precisa formalizar. Era o que se esperava da sessão da quinta-feira no STF. Os ministros passaram horas debatendo se seria válido o que já fora recusado por cinco ministros do STJ, baseados em súmula do próprio STF segundo a qual, em ações recursais, não cabe às cortes superiores reexaminar fatos e provas e dar efeito suspensivo.
Mas nem lógica nem urgência sensibilizam os supremos ministros.
Religiosidade da justiça
Urgência, mesmo, requereu o ministro Marco Aurélio, no fim do dia, ao relatar aos colegas do STF que estava com check-in marcado de um voo e precisava sair. Foi julgado motivo relevante para suspender a sessão que apreciaria o mérito do habeas corpus.
Alguns juízes se queixaram do adiantado da hora. E a sexta-feira? Ninguém cogitou.
Aliás, o ministro Dias Toffoli falou qualquer coisa de que estarem ali já seria excepcional. Semana que vem é santa, embora o feriado seja só na sexta. O calendário do STF tem mais dia santo que o dos cristãos. E saíram todos de féria, indisponível a quem lhes paga o salário.
Anote-se que os ministros Edson Fachin, Luís Barroso, Luiz Fux, Alexandre de Moraes e Carmen Lúcia votaram em varar a noite.
O guardião é o eleitor
Decisão judicial não se discute, cumpre-se, diz um dos mandamentos das pessoas de bem. Mas leis são discutidas, assim como os métodos dos encarregados de fazer cumpri-las e interpretá-las. Tal questão tem sido estudada pelos aspirantes a chefiar o governo. Por todos.
Não se trata de esvaziar o combate à corrupção, em que se destaca a Lava Jato, mas de reaver a autoridade do Estado nacional, hoje em fase avançada de decomposição. A anarquia brota da própria máquina pública, fragmentada por autonomias impostas no grito, em especial para obter regalias à custa da sociedade e de um ardil que perverte a democracia – a criminalização da política.
Fato é que não há como um presidente governar pedindo benção a concursado e nomeado.
A Constituição tem três guardiões (e não apenas um), o Judiciário, o Executivo e o Parlamento, cada qual no seu quadrado. Respeitando a lei, os novos eleitos só devem temer o eleitor. O nome que se dá a isso é democracia. O oposto é anarquia de fiscal de quarteirão.
Exploradores da boa fé
O embate sobre o habeas corpus a Lula esconde outros interesses, tal como aconteceu na discussão das reformas trabalhista, aprovada, e previdenciária, que atolou. Neste caso, a elite do funcionalismo foi eficiente ao colar na sociedade que os pobres seriam lesados.
Na trabalhista, as corporações de advogados deram as mãos aos sindicalistas, indiferentes a mais da metade da população trabalhar na informalidade. Com 2 milhões de ações trabalhistas por ano, muita gente perdeu um filão. Como perdem os criminalistas e os clientes abonados, se continuar valendo decisão do STF que autoriza a prisão depois da sentença ratificada por um tribunal colegiado.
É esse Brasil das sombras que alguns querem manter longe da luz do dia, apresentando-se como protetor dos pobres. E o fazem explorando a boa fé dos incautos. A sessão do STF chacoalhou essa percepção (Antonio Machado é jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas, editor do Cidade Biz (www.cidadebiz.com.br)