Telefone sem fio jornalístico falseia estudo da Nasa sobre clima
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Por Reinaldo José Lopes
Estudo sobre supostas temperaturas insuportáveis no país daqui a 50 anos nem chegava a mencionar território brasileiro.
Talvez você tenha lido em algum lugar da internet (não nesta Folha, graças a Deus) que o Brasil "pode se tornar inabitável daqui a 50 anos" por causa da emergência climática. Bateu uma ligeira vontade de me enforcar num pé de cebolinha, confesso, quando googlei a frase e vi a quantidade obscena de veículos de imprensa que já foram melhores replicando acriticamente as supostas afirmações de um "estudo da Nasa".
Nessas horas, é triste constatar a falta de alfabetização científica de muitos de meus colegas, a ponto de eles acharem que seria aceitável usar títulos como esse, igualando todos os 8,5 milhões de quilômetros quadrados do Oiapoque ao Chuí num só cenário de Mad Max. Tentemos, porém, transformar esse limão em limonada e explicar de onde veio o vaticínio apocalíptico.
Devo muito do que apresentarei nos próximos parágrafos às postagens da geógrafa e doutoranda em climatologia Karina Lima, da UFRGS (recomendo vivamente aos leitores que a sigam nas redes sociais, inclusive). Primeiro: a fonte original dos dados é um estudo de 2020 na revista Science Advances, ressuscitado agora sabe-se lá o porquê.
O trabalho, coordenado por Colin Raymond, do Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa (essa parte era verdade...), versa sobre mudanças globais na chamada temperatura de bulbo úmido. Em resumo, trata-se de uma medida que combina calor e umidade do ar.
Como todos sabemos, uma das reações do nosso corpo ao calor é suar. Quando o suor evapora, a pele esfria, o que ajuda a regular a temperatura corporal. O problema é que, em condições em que tanto o calor quanto a umidade do ar são muito elevados, esse processo começa a perder eficiência – suar já não ajuda a resfriar o corpo.
O limite fisiológico humano, acima do qual as pessoas ao ar livre podem morrer em questão de horas, é o de uma temperatura de bulbo úmido de 35 graus Celsius (IMPORTANTE: não é o mesmo que um termômetro normal medindo 35°C —lembre-se de que o teor de umidade do ar é igualmente relevante).
Pois bem: o estudo de Raymond mostrava o aumento de risco dessas condições no mundo, destacando o sul da Ásia e regiões costeiras do Oriente Médio —e não o Brasil. O pesquisador só falou brevemente do país em 2022, numa entrevista ao site da própria Nasa. A frase em inglês é "leste da China, partes do Sudeste Asiático e do Brasil em 2070" como áreas de risco.
Ou seja, não houve avaliação detalhada do território brasileiro em nenhum momento. Seria absurdo esperar que todo o país se comportasse climaticamente da mesma maneira, mesmo num cenário de aumento intenso da temperatura global, considerando as grandes diferenças que existem entre o clima amazônico, o do sertão nordestino, o do interior paulista e mineiro e o das serras da região Sul, só para ficar nos exemplos mais gritantes.
Nada disso é motivo para minimizar os riscos da crise climática, óbvio. Mas dizer que o "Brasil ficará inabitável" é, ao mesmo tempo, desmobilizante —se é assim, melhor jogar tudo pro alto de uma vez, certo?— e ridiculamente simplificador.
É algo que nos leva a ignorar as complexidades e incertezas não lineares que são inerentes ao sistema climático, a deixar de lado os dilemas cotidianos de menor escala, menos espetaculares, que ainda assim poderão fazer a diferença entre um futuro mais distante ou mais próximo do habitável.
E é pura e simples burrice, mesmo com a melhor das intenções, pintar a situação como um tudo ou nada. Cada décimo de grau Celsius a menos na temperatura global futura que conseguirmos arrancar da goela dos poluidores e desmatadores significa algum respiro, e não é ilusão lutar por ele (Folha, 26/7/24)