UE: Produtores de beterraba temem concorrência da cana do Brasil
Legenda: Cerca de 70% do açúcar consumido no mundo vem da cana, e apenas 30% da beterraba
Segundo a Comissão Europeia, o acordo do bloco com o Mercosul deve poupar às empresas europeias mais de € 4 bilhões em impostos. Mas, como em toda negociação, a Europa também teve que fazer concessões importantes a seus novos parceiros comerciais, especialmente no setor da agricultura. Uma decisão que desagrada especialmente aos produtores de beterraba da França, os grandes fornecedores de açúcar para o continente. Eles veem com preocupação a possibilidade da produção do açúcar brasileiro literalmente invadir o mercado europeu com os preços mais competitivos oferecidos pela cana de açúcar. A RFI ouviu especialistas e representantes de produtores e empresariado para tentar entender o que está em jogo nesta “guerra do açúcar” entre Brasil e França, na disputa pelo mercado europeu.
Segundo Timothé Masson, economista da Confederação Geral de Produtores de Beterraba da França, os produtores franceses serão “penalizados” no caso do açúcar, ao contrário do setor bovino ou de aves. “Este açúcar brasileiro que deixamos entrar sem impostos não é um tipo de produto que encontraremos na França, mas em outros países europeus que não são nossos clientes tradicionais, como o Reino Unido, a Espanha e a Itália, de quem a França sempre foi fornecedora”, explica o especialista, em entrevista à RFI.
“Isso significa menos clientes para a França. É também por isso que existem países favoráveis a esse acordo no centro da Europa, porque se trata de uma maneira de comprar um açúcar mais barato, em relação ao produto francês”, diz. “Estes países não são atualmente produtores de açúcar, mas sim o que chamamos de refinadores. Eles importam o açúcar mascavo e o refinam em branco na Itália, Espanha e Reino Unido”, analisa.
“Com o Brexit e o fechamento do mercado britânico, esse contingente de mercado que demos ao Brasil se destinarão a esses países, ou seja, esse ‘presente’ que demos ao Brasil se torna ainda mais importante se levarmos em conta uma União Europeia com 27 e não 28 países”, avalia Masson, que faz eco à insatisfação dos produtores de beterraba franceses. O acordo com o Mercosul prevê a importação para a UE de 180.000 toneladas de açúcar, principalmente do Brasil, sem taxas alfandegárias. Os produtores franceses de beterraba se sentem ameaçados por essas novas importações e exigem que o acordo não seja ratificado.
Quem lucra com o acordo UE-Mercosul?
Segundo o economista francês Olivier Geneviève, presidente da associação Ethical Sugar(Açúcar Ético, em português), especializada na indústria do açúcar e seus derivados, o custo da produção do açúcar na Europa é muito mais elevado do que no Brasil. “A única saída para a França neste caso seria reexportar a produção excedente para a África, por exemplo, e isso é proibido pela Organização Mundial do Comércio, embora já esteja acontecendo”, diz.
Geneviève explica que toda matéria-prima que é usada num produto final tem seu peso no processo de produção. “Se o preço da matéria-prima baixa, o consumidor não será beneficiado. Na verdade, isso servirá para aumentar o lucro das grandes corporações em todo o agronegócio, ou seja, todas as empresas que utilizam o açúcar em sua cadeia produtiva”, afirma.
“É necessário ver também a questão do etanol. Uma porcentagem de 5,75% da gasolina europeia é misturada ao etanol brasileiro, que, em teoria, é mais barato do que seu equivalente europeu”, diz o economista. “Os grandes beneficiários deste acordo serão empresas como a Coca-Cola, PepsiCo, BP, Shell, todas essas empresas altamente capitalistas”, analisa.
Para Olivier Geneviève, o acordo poderá salvar setor do açúcar e etanol em crise no Brasil. “Os grandes vencedores deste acordo serão os traders e empresas que possuem normalmente um capital de centenas de milhões de euros. O mercado brasileiro está em crise nesse setor há muitos anos. Será uma boia de salvação para eles, tendo como grandes beneficiários as companhias europeias no final”, diz o economista e professor da Escola de Comércio de Lyon, no leste da França.
Impacto sobre os trabalhadores rurais
Em entrevista à RFI, Alcimir Carmo, membro da Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo, afirmou que não sabe se os lucros do acordo com o bloco europeu serão revertidos para o trabalhador. “Pouquíssimo impacto financeiro terá para o trabalhador, ou quase nenhum, não sei se este dinheiro será revertido, vai abrir mercado para o capital, mas para o trabalhador [rural] nós ainda não sabemos”, diz.
Segundo ele, há muita contaminação dos rios e do solo devido à monocultura da cana-de-açúcar. “No processamento industrial, é claro que o produto final chega sem nenhum pesticida, mas isso impacta no meio ambiente e nos trabalhadores [rurais]. É uma preocupação constante com a saúde do trabalhador. Eu acho que a Europa como compradora deveria impor algumas medidas para saber se o trabalhador está sendo bem assistido. Quem compra deveria impor algumas regras, não levar em consideração só o preço, mas a que preço nós estamos produzindo [açúcar e etanol] mais barato”, defende.
Sob o ponto de vista econômico, o representante dos trabalhadores rurais de São Paulo, estado que concentra 63% da produção brasileira de açúcar, Carmo afirma que “o consumidor brasileiro paga caro nos derivados da cana, como o etanol e o açúcar, e o empresariado em contrapartida sempre reclama da falta de investimentos e recursos quando estes são financiados pelo BNDES. O governo sempre socorre os produtores de açúcar, empresta dinheiro a juros bem baratos”.
Ainda segundo ele, a mecanização do setor não ajudou o trabalhador rural. “Mecanizou, entrou a máquina, mas tirou muito trabalhador do seu trabalho. E o governo não conseguiu qualificar este trabalhador para outros empregos, como foi prometido em conjunto a outras entidades, como a Única, por exemplo. Era um trabalho penoso, mas era um trabalho. Hoje praticamente acabou, em pouquíssimos lugares tem-se a figura do trabalhador manual. Em dois anos, 20 trabalhadores morreram de estafa física”, afirma Carmo.
Certificados e garantias de traçabilidade: qual o real interesse da Europa?
“Não vivemos no mundo dos ursinhos carinhosos”, ironiza o economista Olivier Geneviève, sobre o real interesse da Europa em exigir certificações de sustentabilidade aos produtores brasileiros. “Debaixo dos argumentos contra o aquecimento global existem interesses de empresas gigantescas que alimentarão populações inteiras em produtos industrializados, onde o açúcar é a base. Faremos circular carros com o etanol em todo o planeta. Então, como dizem os brasileiros, essas etiquetas sustentáveis acabam se tornando literalmente ‘algo para inglês ver’”, aponta.
“O açúcar na Europa não é consumido diretamente, mas indiretamente através da indústria agroalimentar. O açúcar é um excelente antioxidante, ele estabiliza os produtos. Como ervilhas, por exemplo, em latas. O ketchup também tem açúcar, assim como vários outros produtos industrializados”, conta. “Cerca de 70% do açúcar consumido no mundo vem da cana, e apenas 30% da beterraba”, lembra o economista.
“Do ponto de vista prático, acredito que o impacto deste acordo Mercoul-UE se refletirá num aumento da margem de lucro de multinacionais [ligadas ao agronegócio] na Europa. Isso vai relançar a dinâmica da especulação, do capitalismo, do poder dos acionários. Teremos aqui na França grandes prejuízos em termos de mercado de carne bovina, mas também em indústrias de cana de açúcar, na Martinica, na Ilha de Reunião e outros territórios franceses, por causa do acordo com o Mercosul”, analisa Geneviève.
O economista acredita que a produção francesa do açúcar de beterraba deverá se voltar para o continente africano. “A África tem fome e aumenta enormemente sua população. A margem de manobra que teremos será exportar para eles, com subvenções disfarçadas do contribuinte europeu para tentar encontrar um escoamento do produto nesta panela de pressão”, avalia.
Geneviève lembra que o açúcar da cana brasileiro é mais competitivo que o extraído da beterraba. “Existe também a periodicidade das colheitas. Temos apenas uma colheita para as beterrabas, entre setembro e novembro, sendo que no Brasil podemos ter duas colheitas para a cana”, lembra.
Com a palavra, o empresariado
A União da Indústria de Cana-de-Açúcar (UNICA) do Brasil avalia, através de comunicado oficial, que, as quantidades estabelecidas no acordo entre União Europeia e Mercosul, quando plenamente atendidas, podem elevar o valor exportado para o bloco europeu para mais de R$ 2 bilhões por ano, comparativamente a um total de R$ 600 milhões de exportações para a região no passado (cálculo realizado levando em conta as mesmas condições de preço de 2018). Esse valor equivale a 7% do total das divisas geradas pelo Brasil com a exportação total de açúcar e etanol em 2018.
Questionada sobre as mortes de trabalhadores rurais citadas por Alcimir Carmo à RFI, a entidade “reitera que não há qualquer dado que relacione mortes de trabalhadores no campo a condições precárias de trabalho, seja no setor sucroenergético ou em qualquer outro setor”.
Segundo a UNICA, “os dados oficiais sobre acidentes de trabalho no Brasil resultantes em óbito são identificados no Código Nacional de Atividade Econômica (CNAE), ou seja, pela atividade da indústria contratante; assim, não existe um levantamento oficial específico sobre mortes de trabalhadores que atuam em uma função específica na indústria”.
O texto ressalta ainda o Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-Açúcar, um “acordo de adesão voluntária e caráter evolutivo, que estabelece 30 práticas trabalhistas a serem adotadas pelo setor. O compromisso, resultado de uma negociação tripartite – indústria sucroenergética, trabalhadores e governo federal -, também estabeleceu o acompanhamento da evolução das condições de trabalho por organizações independentes e foi um marco para o setor”.
A ÚNICA celebra o acordo com a União Europeia, “uma grande conquista para o país” (RFI, 15/7/19)