Uma transformação radical na matriz energética global está por vir
Legenda: Cana geneticamente modificada em estufa de biotecnologia de Piracicaba (SP) - Moacyr Lopes Junior - 22.mai.2015/Folhapress
Por Décio Oddone
Se não se apressar, Brasil perderá chance de tirar milhões da pobreza.
A AIE (Agência Internacional de Energia) divulgou um cenário sobre como chegar a um total líquido de zero emissões de dióxido de carbono em 2050, pré-requisito para atingir a meta estabelecida no Acordo de Paris de limitar o aquecimento global a 1,5°C acima da temperatura global média de antes da revolução industrial.
O relatório define medidas para transformar a economia global. Nenhuma nova mina de carvão seria requerida. A demanda por petróleo jamais retornaria aos níveis de 2019 e declinaria para 24 milhões de barris por dia em 2050. O consumo de gás natural seria 55% menor que em 2020. A quase totalidade dos carros e caminhões seria movida por eletricidade ou célula de combustível.
Não seria preciso explorar novas jazidas e não haveria necessidade de novos projetos de óleo e gás, além dos que já tiveram o desenvolvimento aprovado. Nem de novas plantas de liquefação de gás.
Os combustíveis limpos teriam um rápido crescimento, mas deixariam de ser usados em veículos leves. Seriam empregados nos transportes pesados, navegação e aviação.
O crescimento da oferta de biocombustíveis viria do aproveitamento de resíduos e materiais não adequados à produção de alimentos. Plantas de etanol seriam adaptadas para capturar carbono ou usar celulose. A demanda de eletricidade cresceria rapidamente, como a geração por renováveis. A precificação do carbono seria adotada.
Tudo isso impactaria no preço do petróleo, que cairia para cerca de US$ 35 por barril em 2030 e US$ 25 em 2050. Governos teriam de reduzir ou eliminar impostos para manter os níveis de produção. Novos projetos seriam evitados para não haver reflexos nos preços. A rápida eletrificação da frota diminuiria a demanda por gasolina e diesel. Com queda de 85% na carga, refinarias seriam fechadas ou convertidas para petroquímica ou produção de biocombustíveis.
Os investimentos em energia limpa seriam enormes. Além disso, seria necessário eliminar emissões e capturar carbono da atmosfera.
Governos deveriam acelerar o planejamento do uso de resíduos, o desenvolvimento de biocombustíveis líquidos, biogás, biometano, amônia e hidrocarbonetos sintéticos que não emitem CO2. Também da indústria do hidrogênio e da transformação do setor elétrico, com o crescimento da geração hidroelétrica e do uso de baterias para armazenar a energia produzida pelas fontes renováveis e intermitentes.
As dificuldades seriam enormes, mas surgiriam oportunidades para crescimento da economia e criação de empregos. Os países ricos alcançariam esse objetivo antes dos em desenvolvimento. As regiões produtoras de petróleo e gás enfrentariam desafios. Os trabalhadores em projetos de combustíveis fósseis seriam treinados para desempenhar novas funções.
Esse cenário surpreendeu o mundo da energia. E é altamente improvável. No entanto, como as posições da AIE são consideradas na formulação de políticas energéticas de países e empresas, tem um simbolismo importante.
As mudanças elencadas nesse relatório indicam que uma transformação radical na matriz energética global está por vir e servem de mais um alerta. O Brasil não é o único país com potencial para produção de petróleo ou energias renováveis, mas não consegue aprovar medidas, em discussão há anos, para aprimorar o ambiente de negócios.
Nesse novo mundo que se avizinha as disputas por investimentos capazes de gerar riqueza, arrecadação e empregos serão mais acirradas. Se não se apressar, o país perderá mais uma chance de usar os seus recursos para tirar milhões de pessoas da pobreza (Décio Oddone, engenheiro, é diretor-presidente da Enauta S.A.; Folha de S.Paulo, 19/5/21)