14/06/2024

Uso de matriz elétrica limpa cai no Brasil, diz estudo

Uso de matriz elétrica limpa cai no Brasil, diz estudo

energia-solar-e-eolica - FOTO ORIGO ENERGIA

Solar e eólica crescem, mas usinas térmicas fizeram geração limpa encolher em 27 anos, segundo a Fiemg.

matriz elétrica predominantemente hidráulica deu ao Brasil um lugar privilegiado na corrida pela transição energética ao colocar o país entre os que são mais limpos do que aqueles que queimam combustíveis fósseis para o mesmo fim.

Essa predominância da energia limpa, porém, encolheu nos últimos anos. Estudo da Fiemg (Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais) mostra uma redução de 97% para 89% no percentual de fontes consideradas limpas desde 1995.

A mudança no gráfico de matrizes muda, encolhendo o percentual de energia limpa, de acordo a Fiemg, devido ao crescimento da participação das fontes não renováveis, principalmente das termelétricas a gás.

As térmicas a carvão e diesel e as usinas nucleares também estão entre as não renováveis (essa última não é considerada suja). O percentual em relação ao total começa a crescer nos anos 1990 e tem um pico a partir de 2010, chegando a passar de 20% do total. Essas fontes são acionadas de acordo com a necessidade do sistema elétrico. Em 2022, somam 10,6%.

O encolhimento da fatia considerada limpa foi registrado apesar do avanço de outras fontes, como solar, biomassa e eólica, que também tomaram espaço em relação à geração hidráulica, que já chegou a 94,2% em 1995 e estava em 64% em 2022, segundo a análise da indústria mineira.

A entidade da indústria vem em campanha pela retomada das construção de hidrelétricas e vê disposição de parte do governo Lula em recolocar o assunto à mesa. Para Flávio Roscoe, presidente da Fiemg, as hidrelétricas foram "equivocadamente demonizadas como se fossem nocivas ao meio ambiente".

A última grande obra hidrelétrica no Brasil foi a da usina de Belo Monte, no Pará, que desde a sua construção, iniciada em 2011, é cercada de polêmicas e críticas pelo custo, pelo impacto ambiental (mudou, por exemplo, o curso do rio Xingu) e socioeconômico (chegou a ter 25 mil trabalhadores na obra, milhares de moradores foram reassentados e Altamira chegou a ter a maior taxa de homicídios do Brasil).

A Fiemg não é a única. Especialistas do setor elétrico têm apontado que somente a fonte hidráulica garantiria estabilidade na geração. Outras, como a solar e a eólica, as queridinhas dos investidores em meio à onda de projetos verdes, têm intermitência.

As térmicas, por outro lado, também geram energia de forma contínua, só que a um preço maior. Nos períodos de estiagem, elas são maior acionadas, o que acaba impactando as bandeiras tarifárias e, por sua vez, a conta de luz do consumidor.

Para a Fiemg, a combinação hidráulica, solar e eólica (além de outras fontes limpas que ainda tem participação muito pequena na matriz brasileira) darão ao país segurança do fornecimento de energia e manterão o Brasil em condições de se apresentar como sustentável.

"A gente se dá conta de que toda vez que se impede uma hidrelétrica de ser construída, você tem que contratar [energia produzida por] termelétrica para dar segurança no sistema e essa é muito mais cara. Se nada for feito para facilitar a construção de hidrelétrica, a matriz elétrica brasileira vai sujar, e não limpar."

 

Roscoe também defende que a falta de investimentos nesse tipo de usina encarece a energia e cria o risco de o Brasil não se viabilizar como um protagonista da economia limpa. "A questão de fundo é que se for sujando, os produtos brasileiros também não serão considerados limpos."

Há ainda o Acordo de Paris, que prevê a redução na emissão de gases de efeito estufa, com menos para 2025 (menos 48%) e 2030 (menos 53%).

Segundo o estudo da Fiemg, a partir de dados da EPE (Empresa de Pesquisa Energética), as hidrelétricas responderam por 78% da energia gerada entre 1970 e 2022, enquanto as termelétricas ficaram com 18%. No mesmo período, essas últimas responderam por 79% das emissões de GEE (gases de efeito estufa), enquanto as hidrelétricas emitiram 20%.

O presidente da Fiemg diz considerar que o governo tem consciência da necessidade das hidrelétricas, mas que essa percepção não é a mesma em todos os ministérios. "Nossa maior preocupação é a área ambiental, que é onde tem que se resolver o problema" (Folha, 14/6/24)


Brasil é um dos líderes na transição energética global, diz diretor do Fórum Econômico Mundial

Espen Mehlum, diretor de inteligência de transição energética e aceleração regional do Fórum Econômico Mundial - Divulgação Fórum Econômico Mundial

 

País tem muito a ensinar a economias emergentes, mas alto custo de capital é desafio, afirma Espen Mehlum.

O Brasil é um dos países que lideram a transição energética global e tem muito a ensinar a outras economias, principalmente as emergentes. A afirmação é de Espen Mehlum, diretor de inteligência de transição energética e aceleração regional do Fórum Econômico Mundial.

Ele esteve em Belo Horizonte nesta semana para a terceira reunião do grupo de trabalho de transições energéticas do G20, órgão que reúne as maiores economias globais e é presidido pelo Brasil neste ano.

O Brasil aparece na 14ª posição em um estudo de 2023 do Fórum que classifica, entre 120 nações, as mais avançadas na transição energética. O país é o mais bem colocado na América Latina e entre as economias emergentes.

"No relatório de 2024, que devemos divulgar nas próximas semanas, o Brasil melhorou ainda mais sua posição", afirmou Mehlum à Folha.

O diretor do Fórum Econômico citou três diferenciais brasileiros que sustentam seu papel entre as lideranças globais: a matriz energética com 93% de participação de fontes renováveis; o investimento de décadas em biocombustíveis; a força das instituições e a maneira como elas trabalham de forma conjunta.

Entre os desafios, o principal deles é o alto custo de capital, que importa porque a transição energética demanda bilhões de dólares, explica Mehlum.

Qual a importância do Brasil no processo de transição energética global?
No centro desse movimento há a necessidade de entregar, ao mesmo tempo, sustentabilidade, equidade e segurança para o sistema de energia. E o Brasil tem sido um líder tanto na América Latina quanto globalmente.

Entre três pontos que mostram a força brasileira, um é a matriz energética muito limpa. Isso é resultado dos recursos naturais, é claro, mas também é explicado por políticas muito boas tomadas durante um longo período de tempo.

O Brasil foi pioneiro globalmente no uso de leilões de energia renovável em 2004 e agora está usando modelos avançados para garantir ainda mais que a energia solar, eólica e outras fontes renováveis possam ser implantadas. Programas como o Luz para Todos [de eletrificação de localidades remotas, lançado em 2003] também têm sido muito importantes para garantir que todos tenham acesso a isso.

Segundo, são os biocombustíveis e o investimento feito durante décadas com políticas apoiando a estratégia. É incrível ver como no Brasil todo carro pode rodar com etanol. É a opção mais barata, está disponível para todos e gera um grande benefício para a economia, mas também para a sustentabilidade. Outros países também conseguiram isso, mas não da mesma forma que o Brasil.

Terceiro, aparece a força das instituições e como elas trabalham de forma conjunta. No lado financeiro, o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] desempenha um papel fundamental para financiar desenvolvimentos de infraestrutura energética que são necessários. Você ainda tem a Aneel [Agência Nacional de Energia Elétrica], a EPE [Empresa de Pesquisa Energética] e o Ministério de Minas e Energia.

“É incrível como no Brasil todo carro pode rodar com etanol. É a opção mais barata, está disponível para todos e gera um grande benefício para a economia, mas também para a sustentabilidade” afirma Espen Mehlum, diretor de inteligência de transição energética e aceleração regional do Fórum Econômico Mundial

 

E quais desafios se impõem diante do Brasil?
Em um aspecto mais geral, muitos países estão lidando sobre como acelerar a transição energética para atender aos objetivos climáticos e, ao mesmo tempo, manter a energia acessível para todos.

Um desafio específico do Brasil é o custo de capital ser bastante alto. E por que isso importa? Porque a transição energética precisa de enormes investimentos. Trilhões de dólares de investimentos globalmente. Bilhões também no Brasil.

Outro está na bacia amazônica, onde há comunidades isoladas e sem acesso a energia limpa. Muitas vezes elas funcionam com geradores a diesel com ruído e poluição. Agora há um desafio para garantir que essas comunidades possam ter acesso a energia limpa.

 

O que o Brasil pode ensinar a outras economias, principalmente as emergentes?
Há muito a aprender com o Brasil. Eles não podem copiar e colar, porque cada um tem diferentes recursos naturais, sistemas políticos. Mas existem algumas políticas que o Brasil fez que outros já aprenderam e podem aprender. Um foram os leilões de energia renovável, como mencionei, que todo mundo começou a fazer também.

O país ainda mostrou o caminho de que grandes programas como o Luz Para Todos podem fazer a diferença, além de estar desempenhando um papel muito importante internacionalmente neste ano e no próximo. Está sediando a reunião do G20, a reunião Ministerial de Energia Limpa, e a reunião da COP-30 [30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas] no próximo ano [em Belém (PA)].

Esses eventos são uma oportunidade de o Brasil mostrar sua experiência e ajudar a direcionar o mundo para um futuro energético mais sustentável, igual e seguro.

As autoridades brasileiras têm afirmado que a maior parte do investimento para a transição energética global tem que partir dos países mais ricos, não dos mais pobres e das economias emergentes. Como o senhor vê esse argumento?
Há uma enorme diferença em relação para onde o capital está sendo direcionado. No ano passado, US$ 1,7 trilhão (R$ 8,8 trilhões) foi investido em energia limpa no mundo. E apenas 16% disso foi para economias emergentes e em desenvolvimento.

Se você tirar a China da equação, porque ela foi o maior investidor global, e se excluir o Brasil e a Índia do cálculo, a proporção que vai para economias emergentes e em desenvolvimento é muito, muito pequena. Então há um problema.

O que precisa acontecer é cada país fazer algo para melhorar sua atratividade para receber investimentos. São questões como o ambiente institucional e políticas previsíveis para as empresas que querem investir em seus territórios.

Mas também precisa haver mais investimentos estrangeiros diretos. E existem diferentes coisas que podem acontecer aí. Há uma questão que as economias desenvolvidas também não têm grandes orçamentos, há déficits orçamentários, outros desafios.

Os bancos multilaterais de desenvolvimento podem ser uma ferramenta, porque essas instituições estabelecem padrões sobre em que investir ou não. E há uma necessidade de os países garantirem que esses bancos assumam mais riscos e forneçam o capital para áreas onde o setor privado não consegue fornecer.

“Esses eventos [G20, COP-30] são uma oportunidade de o Brasil mostrar sua experiência e ajudar a direcionar o mundo para um futuro energético mais sustentável, igual e seguro”, afirma Espen Mehlum, diretor de inteligência de transição energética e aceleração regional do Fórum Econômico Mundial

Em um artigo de 2021, o senhor escreveu sobre como a inteligência artificial (IA) poderia acelerar a transição energética. Considerando a atual febre em torno dessa tecnologia, qual a importância que ela tem nesse processo?
Em energia, há uma grande oportunidade para a IA otimizar cada ativo, economizar energia, gerar eficiência energética e otimizar processos de trabalho.

Por outro lado, a IA depende de data centers [centros de processamento de dados]. Grandes empresas, as big techs, estão procurando locais para construí-los onde há energia barata e limpa.

Isso pode ser uma oportunidade para o Brasil, mas também um desafio pelo consumo de energia necessário para abastecer esses locais. Como se planejar para garantir essa demanda? Isso pode reduzir a oferta para outros usos? Você consegue aumentar a oferta para poder alimentar esses data centers rápido o suficiente?

RAIO-X

Espen Mehlum, 50

Nascido na Noruega, tem mestrado em economia e negócios na NHH (Norwegian School of Economics) e em liderança global no Fórum Econômico Mundial. Foi assessor do Ministério do Petróleo e Energia da Noruega. Está desde 2006 no Fórum Econômico Mundial (Folha, 14/6/24)