06/06/2024

Varejo manobra para comprar soja e carne de área desmatada

Varejo manobra para comprar soja e carne de área desmatada

SOJA-Foto Weimer Carvalho dpa picture alliance

Lei europeia exigirá das empresas declaração provando que suas cadeias de fornecimento não contribuem para a destruição de florestas 

 

Segundo entidades, grupo de maiores varejistas globais enfraqueceu parâmetro para verificação de cadeias de fornecimento no Brasil. Alteração vai na contramão de regulamentação europeia prestes a entrar em vigor.

Às vésperas do início da normativa da União Europeia (UE) que proibirá a importação de produtos oriundos de áreas de florestas tropicais desmatadas, um conjunto de organizações civis ambientais denuncia que o The Consumer Goods Forum (CGF, na sigla em inglês), grupo que reúne alguns dos maiores varejistas globais, tem flexibilizado os critérios para a compra de soja e carne oriundos de áreas desmatadas no Brasil, indo propositalmente em direção contrária à nova legislação.

As organizações apontam ainda que, há alguns meses, o CGF passou a aconselhar suas empresas — como a americana Walmart, a francesa Carrefour e a britânica Tesco — a procurar por soja no país em territórios classificados como de "risco negligenciável". Com isso, as varejistas ficam isentas de rastrear o produto até a fazenda de origem, excluindo assim a checagem para garantir que o grão não foi produzido em regiões desmatadas.

A orientação vai totalmente na contramão da normativa europeia, cujo modelo prevê rastreamento até a ponta final da cadeia. A lei europeia exigirá das empresas importadoras uma declaração de devida diligência provando que suas cadeias de fornecimento não contribuem para a destruição de florestas. Ou seja, as empresas terão de indicar quando e onde as commodities foram produzidas, provando sua rastreabilidade através de dados de geolocalização.

O texto da legislação da UE, que faz parte do Pacto Verde do bloco, foi aprovado em 2023 para entrar em vigor a partir de dezembro deste ano, mas, em março, o jornal britânico Financial Times publicou uma reportagem afirmando que a pressão de alguns países do Sul Global pode fazê-lo adiar o início das novas regras. A União Europeia, sediada em Bruxelas, na Bélgica, ainda não confirmou a mudança.

Mudança de classificação

Interlocutores ouvidos pela DW apontam que o The Consumer Goods Forum enfraqueceu os padrões de verificação das cadeias de fornecimento das empresas que integram o fórum mudando a forma como classifica áreas de abastecimento.

A operação funciona assim: para definir uma área como "risco negligenciável" para o desmatamento, o fórum, primeiro, orienta que as empresas recorram a uma lista das cidades brasileiras com taxas mais baixas de desmatamento associado ao produto que se deseja comprar, como soja ou carne, por exemplo. Depois, que comparem as taxas de desmate anual de todos os biomas do país com o nível de transformação ambiental do território ao longo do tempo, em específico, causada inclusive pela expansão de alguma dessas produções, e depois compare com a conversão de áreas de florestas causada por essa mesma commodity a nível nacional.

Se o resultado dessa equação mostrar que a proporção de área desmatada está abaixo de um limite pré-estabelecido, o grupo entende que é possível negligenciar a quantidade de desmate existente ali, ou, em outras palavras, que a soja produzida naquele território pode ser considerada "livre de desmatamento" (ou DFC, na sigla em inglês).

Para as organizações ambientais, o perigo está no fato que, cada vez que o desmatamento total do país aumentar, seja por ações legais ou ilegais, o número de territórios enquadrados com de "risco negligenciável" também tenderá a subir. Ao final, abre-se um flanco para desmatar mais, embora a ritmo lento.

"Significa que passará a existir um nível tolerável para o desmatamento no Brasil", afirma Daniel Silva, especialista em conservação da WWF-Brasil. "Pior: esse nível tolerável não será nem mais considerado como desmatamento, já que a nova classificação sugere que esses produtos são oriundos de áreas onde nenhuma floresta está sendo destruída neste momento, o que não é verdade", completa.

Dados obtidos com exclusividade pela DW, a partir de uma série de pesquisas feitas na Inglaterra e na Suécia, mostram que essa flexibilização já permite que pelo menos um terço da produção de soja brasileira seja catalogada, a partir de então, como de "risco negligenciável", entrando no mapa dos compradores internacionais, inclusive na Europa, como se fossem "livres de desmatamento".

"É importante dizer que a imensa maioria da soja produzida nos territórios de risco negligenciável no Brasil não está associada ao desmatamento", prossegue Silva. "Porém, uma minoria de produtores viola direitos humanos e desmata ilegalmente. Com essa orientação, vão poder oferecer o produto deles da mesma forma que os outros, inserindo no mercado uma soja associada a essas infrações sem nenhum impedimento. Para quem adota boas práticas, é uma grande injustiça".

À DW, o The Consumer Goods Forum confirmou que adotou a metodologia, feita a partir de um guia produzido pela Accountability Framework (AFi), entidade que reúne atores do mercado, da sociedade civil e das finanças em torno do monitoramento das cadeias de commodities. A ideia, segundo o CGF, era estabelecer limiares de classificação de produtos que poderiam entrar na lista dos livres de desmatamento. O fórum ainda afirmou que essa não é a única maneira usada pelo grupo para rastrear as origens de produtos como a soja, citando ainda certificações exigidas e monitoramento nas fazendas.

Na mesma resposta, o The Consumer Goods Forum explicou que seus membros podem decidir individualmente como utilizar métricas de avaliação para produtos oriundos de áreas de desmate, e que a orientação do fórum é que produtos podem ser classificados como DFCs apenas se produzidos em regiões cuja conversão de floresta para plantação de soja não ultrapasse 5% do território.

Ainda que recomendações como a da The Consumer Goods Forum não tenham status legal, as classificações feitas por essas entidades têm o efeito de impedir que commodities atreladas a más práticas ambientais ou sociais circulem por mercados globais. A principal força delas está em esvaziar o volume de clientes interessados, já que eles não querem associar sua imagem a produtos ligados à degradação e violações de direitos.

"A pauta ambiental tem força entre consumidores europeus. Isso influencia o posicionamento das varejistas em não comprar produtos de fornecedores associados a desmatamento. É quase um impeditivo regulado na própria lógica do mercado", diz Guilherme Eidt, assessor do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), sediado em Brasília. A instituição é uma das signatárias de uma carta enviada ao CGF, em Paris, no começo de maio, pedindo a revisão da metodologia.

"Para mim, a orientação do fórum é mais uma forma de pressionar e enfraquecer o alcance da normativa da União Europeia do que qualquer outra coisa", completa.

Essa é uma análise comum entre diversos especialistas do campo, que sugerem que a orientação tem o papel de se antecipar à normativa europeia. "Até porque, no contexto atual, tudo é regulado apenas pelo mercado. A nova lei do bloco vai mudar isso, inserindo o Estado nesse processo", avalia Márcio Astrini, do Observatório do Clima.

Na resposta à DW, o The Consumer Goods Forum disse que mecanismos como esses servem para expressar a preocupação das empresas com as origens dos produtos que elas compram. "Elas reconhecem que alguns riscos, como desmatamento e a conversão [de florestas em plantações], estão altamente concentrados em poucos fornecedores, e que a rastreabilidade das unidades de produção é limitada", diz a entidade.

Impactos

Entidades ambientais ouvidas pela DW nas últimas semanas também apontam que a flexibilização na rastreabilidade e na catalogação das áreas associadas ao desmatamento terão efeitos perniciosos sobre direitos humanos, além de promover a extinção de espécies animais.

Para Eidt, a abordagem do fórum pode gerar uma expansão repentina de desmatamento em áreas ainda intocadas, assim como em ecossistemas destruídos no passado. Ele aponta como exemplo a Mata Atlântica e a região Sul do Cerrado, onde o desmatamento é baixo, mas há risco iminente de extinção de espécies animais. "Ao ignorar esses pontos, a orientação do CGF compromete seriamente os esforços de conservação ambiental e de sustentabilidade a longo prazo", aponta.

Para Silva, há ainda uma questão de governança global. Com a nova metodologia, grandes empresas assumem o papel de definir quais são os padrões toleráveis de destruição de florestas. "Como são os maiores compradores dessas commodities, elas vão ter mais condições de estipular os patamares aceitáveis do mercado inteiro em relação ao desmatamento, e isso a partir das suas próprias demandas", completa.

Números do Observatório do Clima mostram que quase metade (48%) de todas as emissões de gases do efeito estufa do Brasil em 2022 foram resultado de ações de desmatamento. Não é trivial que, nos últimos anos, o governo brasileiro venha reafirmando o compromisso de zerar esse tipo de ação em todos os biomas do país até 2030.

Esse plano faz parte, na verdade, da ambição mais ampla de reduzir em 43% as emissões brasileiras no mesmo período. Há algumas semanas, a rede MapBiomas divulgou um relatório mostrando que o Cerrado teve uma alta de 67,7% em áreas desmatadas na comparação ao ano anterior. A preocupação com esse bioma, em específico, tem crescido entre ambientalistas no Brasil, principalmente pelo avanço da soja.

Segundo o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), o Brasil respondeu por 58% das vendas de soja no mundo em 2023. Entidades apontam que essa o país está perto de superar a marca de 60%. O maior cliente é a China – que também é o maior importador global do grão.

"Quando o mercado não assume compromissos claros de cortar fornecimento de produtos originários de áreas de desmatamento e conversão de suas cadeias, o que ele está fazendo é contribuir para que isso continue acontecendo", continua Eidt. "A metodologia do CGF é só um exemplo disso".

Em meados de maio, um grupo de 14 entidades ambientais de dentro e de fora do Brasil enviou uma carta à The Consumer Goods Forum, à qual a DW teve acesso, pedindo, entre outras coisas, uma revisão da orientação sobre riscos das cadeias de soja e carne, e que a entidade volte a exigir a rastreabilidade das cadeias até as fazendas de origem. Entre as signatárias estão a Deutsche Umwelthilfe, associação alemã sediada em Hannover, a Migthy Earth, de Washington (EUA), que monitora o avanço do desmatamento nas cadeias de soja no Brasil, e redes brasileiras como o Instituto Cerrados, a ISPN e a WWF.

À DW, o The Consumer Goods Forum disse que recebeu a carta e que irá respondê-la. "Teremos a oportunidade de se engajar diretamente com as redes da sociedade civil", finalizou (DW, 5/6/24)