Venda direta de etanol para os postos abre polêmica no setor
Grandes empresas do Sudeste são contra; pequenas do Nordeste, a favor.
A paralisação dos caminhoneiros alimenta mais uma polêmica no setor de combustíveis: a venda direta de etanol das usinas para os postos.
Grandes produtores, distribuidores e revendedores do centro-sul do país são contrários à medida. Médios e pequenos produtores, em particular do Nordeste, querem que a prática seja adotada. Na esteira da discussão, um projeto de lei que libera a venda direta avança no Congresso.
Previsto para ser votado pelo plenário do Senado nesta terça-feira (19), o texto acaba com o efeito de uma norma publicada pela ANP (Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) em 2009.
A regra determina que a venda do etanol só pode ser feita pelos produtores às distribuidoras, que, por sua vez, comercializam com os postos.
Ao apresentar o projeto após a paralisação dos caminhoneiros, o senador Otto Alencar (PSD-BA) disse que permitir a venda direta entre produtores e postos aumentará a concorrência, levando a uma redução no preço do etanol. Na Câmara, há outras propostas semelhantes.
Representantes das maiores empresas pressionam o Congresso contra o projeto. Entidade que agrega empresas responsáveis por 60% da produção de etanol do país, a Unica (União Nacional da Indústria de Cana-de-Açúcar) está unida à Plural (associação das distribuidoras) e à Fecombustíveis (federação dos postos).
O grupo justifica que pulverizar a distribuição de etanol vai dificultar a fiscalização, o que pode levar a uma piora na qualidade do produto e a uma elevação da sonegação de impostos.
"Para nós, isso não traz eficiência, ganho algum, seja para o consumidor, seja para o revendedor, seja para o produtor. Essa falácia de que você vai sair com um caminhãozinho de 10 mil litros para entregas picadas frequentes não funciona", afirmou o presidente da Plural, Leonardo Gadotti.
Para o presidente do conselho da Unica, Pedro Mizutani, o argumento de que os preços serão reduzidos é balela. Ele explica que hoje as entregas aos postos são feitas por caminhões compartimentados que levam etanol, gasolina e diesel ao mesmo tempo. Segundo ele, a nova regra vai aumentar os custos de frete.
Em nota técnica, a ANP afirma que a liberação da venda direta exigiria mudanças na tributação que não estão previstas em lei. A incidência de PIS/Cofins e ICMS sobre as distribuidoras não teria como ser aplicada, o que levaria a uma queda de arrecadação perto de R$ 2,2 bilhões ao ano.
Representados pela Feplana (Federação dos Plantadores de Cana do Brasil), os produtores de etanol favoráveis à venda direta alegam que a medida reduziria o custo, ao excluir do processo as margens das distribuidoras.
Eles afirmam também que venda direta eliminaria o que chamam de "passeio do etanol" --quando o produto tem de viajar da usina para a base das distribuidoras, mesmo que existam postos por perto.
"Só isso [o fim do passeio] baratearia uns R$ 0,10 por litro", diz Alexandre Lima, presidente da Feplana.
Ele afirma que 10% dos R$ 265 bilhões que o setor movimenta ficam com as distribuidoras.
Lima acusa as grandes distribuidoras de fazer lobby para impedir a mudança. "As unidades que têm produção muito alta de etanol têm medo de perder mercado", diz.
A Fenapla defende a fiscalização da qualidade do combustível nos próprios postos, com o uso de densímetro --equipamento que indica quando há mais água do que o permitido. Segundo a entidade, a fiscalização tributária deve ocorrer nas usinas (Folha de S.Paulo, 19/6/18)
Usineiros devem discutir venda direta de etanol nas bombas no dia 26
O Fórum Nacional Sucroenergético deve debater no próximo dia 26, em um reunião fechada em Brasília (DF), a questão da venda direta de etanol para postos de combustíveis, afirma o presidente da associação, André Rocha. A entidade não tem uma posição fechada sobre o tema, porque dentro da associação há visões contrárias ao projeto. A Unica, a Alcopar e Biosul, produtores de Pernambuco, Piauí e Rio Grande do Norte são favoráveis.
"Precisamos debater e sugerimos que cada associação promova conversas regionais com sindicatos de postos de gasolina. Pedimos também para as secretarias estaduais de governo também realizarem cinversações. Precisamos debater sem paixão", disse.
Rocha afirmou, ainda, que o Fórum deve aproveitar um evento já agendado para tratar sobre o RenovaBio, para promover o debate (Broadcast, 18/6/18)
Venda direta de etanol para posto não compensa, diz presidente da Raízen
Distribuidora estima aumento de cerca de R$ 800 mi nos custos do setor.
Uma das maiores distribuidoras de combustível do país, a Raízen é contra o projeto de lei que pretende liberar a venda direta de etanol das usinas para os postos.
A empresa, que faz parte do grupo da Cosan, que também está entre os líderes na produção de açúcar e de etanol no mundo, tem quase 20% da distribuição desse tipo de combustível no país.
Em entrevista à Folha, o presidente da Raízen, Luis Henrique Guimarães (Foto), afirma que, para os grandes grupos, vender para os postos terá efeito reverso ao proposto, elevando o preço dos combustíveis na bomba para os consumidores finais.
A estimativa é que os custos de todo o setor aumentariam em cerca de R$ 800 milhões se a medida fosse aprovada, afirma Guimarães.
Por que a maior produtora de etanol é contra o projeto?
Somos o maior produtor e também um dos maiores distribuidores. Somos contra porque, primeiro, o país separou as cadeias do combustível [produção, distribuição e revenda].
Outro motivo: você não voa direto de Delaware [estado dos EUA] para o Rio de Janeiro. [A companhia aérea] Faz uma rota [com conexões] para ter escala. A lógica aqui é a mesma: você não entrega direto [para o posto]. É por isso que temos centros de distribuição no Brasil inteiro.
O projeto não obriga os grandes, como a Raízen, a mudarem sua estrutura só para vender diretamente. Por que ser contra?"‚Para haver mudança no modelo do setor, é preciso que ela seja feita com a visão do todo.
Pela complexidade tributária, isso criaria um ambiente anticompetitivo, com regras diferentes para operações semelhantes e com o provável aumento de sonegação fiscal [hoje, produtor e distribuidor são responsáveis pelo recolhimento do PIS e da Cofins na proporção de R$ 0,13 por litro e R$ 0,11 por litro, respectivamente. A ausência do distribuidor exigirá mudanças na legislação tributária].
Há quem diga que esse projeto só favorece produtores menores, especialmente do Nordeste. Faz sentido?
A lei hoje permite que qualquer produtor possa vender diretamente ao posto, desde que ele também seja distribuidor [com CNPJ diferente]. Só precisa ter capital mínimo de R$ 4,5 milhões e um tanque de pelo menos 70 metros cúbicos [para armazenagem].
Refinaria não é ponto de logística. Temos 24 usinas de etanol só em São Paulo. Por que não vendemos direto então? Essa conta não fecha nem em São Paulo [que é o maior centro consumidor]. Na distribuição, falamos em margens de lucro de R$ 0,01.
Então, para mudar isso, haveria aumento de custos em vez de redução, como quer o governo?
O processo vai custar mais caro. O projeto [de lei] parte de uma falsa percepção de que, no etanol, a entrega direta reduz custo. A gente estima que haverá um aumento de cerca de R$ 800 milhões nos custos do setor como um todo.
Um estudo do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) apontou que a venda direta pode acabar com margem dupla de lucro e isso reduziria preço. O Cade errou?
Na minha opinião, o estudo é muito mais para gerar a discussão, para um aprofundamento [posterior].
O Cade também fala que a medida estimularia a competição.
Instalou-se no Brasil uma competição bastante grande. Menos na refinaria, que tem monopólio da Petrobras, numa parcela importante [da cadeia].
Na revenda, são 44 mil postos de combustíveis e uma média de 150 mil litros vendidos [por posto] todos os meses. Na produção de etanol, são mais de 200 [empresas], a maior parte no centro-sul do país (Folha de S.Paulo, 19/6/18)
Usina precisa avaliar os riscos de distribuir etanol – Por Plinio Nastari
Qualidade da distribuição e o quanto a medida seria lucrativa precisam ser analisados
A paralisação dos caminhoneiros trouxe entre outros temas o debate sobre a venda direta de etanol das usinas aos postos de revenda, sem passar pelas distribuidoras, com a motivação de tornar o combustível mais barato ao consumidor. A discussão surge no momento em que é consolidado o Plano Nacional de Biocombustíveis, RenovaBio, com a aprovação da meta de redução de 10,1% na intensidade de carbono dos combustíveis, que tem como parte obrigada as distribuidoras, que visa estimular investimento em aumento de produtividade e de volume de biocombustíveis.
A venda direta não pode ser confundida com a ideia de, emergencialmente durante a greve, produtores venderem etanol ao consumidor a partir das poucas bombas disponíveis em suas instalações, recolhendo obviamente todos os impostos, para superar a falta gerada pela greve. Nem pode ser confundida com a possibilidade de se mitigar o chamado “passeio do etanol”, quando o produto é enviado por uma distribuidora para uma base secundária, para depois retornar para localidades próximas ao produtor, onerando desnecessariamente a distribuição e, em última instância, o preço pago. Venda direta seria permitir que os produtores vendessem diretamente aos postos, sem ter que passar pelas distribuidoras.
O tema é regulado por resolução da Agencia Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, que determina a obrigatoriedade da comercialização observados os elos da cadeia de comercialização, produtor-distribuidora-revenda. Proponentes defendem a venda direta como forma do produtor acessar diretamente a revenda, em defesa do livre mercado e da livre concorrência. Mas é um tema que merece reflexões.
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A primeira questão é verificar se existe barreira efetiva à venda direta do produtor ao posto. Em princípio, um produtor, ou grupo de produtores, pode constituir ou adquirir uma distribuidora, e desta maneira realizar a venda ao posto observada a regulamentação em vigor. Cabe, no entanto, verificar se existe barreira a entrada para constituição, ou transferência de titularidade, de distribuidora pelas regras da ANP. Não havendo, o tema está resolvido.
Caso exista uma barreira regulatória ou de investimento para entrada na atividade de distribuição, há duas situações: a avaliação de risco empresarial para decidir se vale a pena entrar no negócio, e uma avaliação de impacto setorial ou de política pública sobre o tema.
Do ponto de vista empresarial, a venda direta apresenta riscos que precisam ser ponderados, e o resultado pode ser mais limitado do que parece. Os sindicatos que atualmente defendem a venda direta são em grande parte representativos de produtores localizados na região Nordeste, onde prevalece o consumo de gasolina e, consequentemente, do etanol anidro a ela adicionado na proporção de 27%, com baixo consumo de etanol hidratado. Na safra 2017/18, o consumo de etanol anidro na região Norte-Nordeste deverá ser de 3,2 bilhões de litros, e o de etanol hidratado de 1,1 bilhão de litros. A título de comparação, na safra 2017/18 já encerrada na região Centro-Sul, o consumo de etanol anidro e hidratado combustível foi de 8,43 e 13,76 bilhões de litros, respectivamente. O etanol anidro para ser misturado à gasolina precisa necessariamente passar por uma distribuidora, pois tecnicamente a mistura não pode ser realizada nos postos, portanto seu efeito se limitaria ao etanol hidratado. É curioso observar que, neste momento, são produtores do Nordeste que defendem a venda direta e não os demais, onde se concentra a venda de etanol hidratado.
Para o etanol hidratado, há ainda a segmentação entre os postos denominados de bandeira, e os de bandeira “branca”. Como a relação entre as distribuidoras e os postos de bandeira é definida em contratos entre agentes privados, a liberação da venda direta em grande parte do mercado não atingirá os postos de bandeira. Caso uma autoridade governamental resolva interferir nesta seara certamente haverá judicialização, cabendo à Justiça determinar se será possível ou não. Neste sentido, chama atenção o fato do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), ter dado parecer favorável à venda direta, pois só cabe no caso de venda a postos bandeira branca, já que não pode ferir a liberdade de privados realizarem contratos entre si. Tampouco cabe a medida emergencial adotada por despacho da ANP, que autorizou a liberação do abastecimento de postos de qualquer bandeira pelas distribuidoras, corretamente cancelada logo após a greve.
Portanto, a venda direta, caso implementada, tende a se aplicar num primeiro momento apenas a postos bandeira branca, com volume muito limitado.
Ainda do ponto de vista empresarial, a venda direta pode trazer como consequência a regionalização da distribuição de etanol. Os produtores não dispõem de infraestrutura para a distribuição em escala do produto, como frota, dutos, tanques, bases secundárias, instalações portuárias e sistema de cabotagem. É preciso avaliar o interesse empresarial em limitar a distribuição do etanol hoje disponível em boa parte do país, pelo sistema integrado das distribuidoras. Neste sentido, o Brasil se distingue dos Estados Unidos por ter conseguido nestes 43 anos desde a criação do Proálcool, criar uma rede de distribuição nacional de etanol, anidro e hidratado.
Finalmente, do ponto de vista empresarial é preciso avaliar se o esforço vale a recompensa. O objetivo seria capturar o resultado líquido da margem de distribuição, deduzidos os custos envolvidos. Este resultado precisaria ser maior do que a recompensa por participar do RenovaBio, pois sem a existência da distribuidora como parte obrigada, não há como receber o pretendido benefício da venda do crédito de descarbonização, que é o estímulo para o aumento de produtividade. E há ainda a questão financeira de geração de capital de giro. Com as distribuidoras, os produtores emitem faturas para grandes empresas, e as duplicatas são mais facilmente negociáveis com os bancos. Com a venda direta, os produtores teriam faturas com os postos, e seria necessário avaliar o impacto desta mudança no capital de giro, no custo financeiro e no risco de crédito das operações comerciais.
Do ponto de vista de política pública, a ótica é mais geral e o objetivo deve ser o de assegurar a manutenção da distribuição, com qualidade, preservação da competição entre os agentes, capacidade de fiscalização, e oferta do produto a baixo custo para o consumidor. É preciso endereçar quem ficará responsável pela manutenção da oferta do produto nos períodos de entressafra, transferências inter-regionais e a importação de produto quando necessário. A competição é tema resolvido se não houver barreira à entrada do produtor na distribuição. A regionalização da distribuição é preocupação relevante como tema de política pública. A garantia da qualidade definindo onde, quando e como seria realizada é algo ainda a ser desenhado. Como se daria a fiscalização, e sua eficácia, no recolhimento dos tributos e qual o resultado final para o preço do consumidor, são fatores ainda a serem estudados.
O tema da venda direta de etanol das usinas aos postos, tratado de forma simples e sem o devido cuidado, pode trazer riscos e consequências a nível empresarial e de políticas públicas que precisam ser corretamente avaliados. No momento em que o RenovaBio se consolida, e tem como elemento-chave o papel das distribuidoras como partes obrigadas, o debate sobre a venda direta pode atrapalhar sua consolidação. Mas, talvez, a preocupação real de alguns produtores pode estar relacionada à ineficiência gerada pelo passeio do etanol. Esse sim, pode ser o tema para o qual carece discussão mais acurada, e para o qual uma solução pode trazer maior competitividade para todos os produtores, e um benefício real para os consumidores (Plinio Nastari é representante da Sociedade Civil no CNPE (Conselho Nacional de Política Energética); Folha de S.Paulo, 19/6/18)