Visões, possibilidades e tendências do pós-pandemia – Por Paulo Hartung
Mostra-se plausível que o trio saúde, sanidade e sustentabilidade se estabeleça de vez.
O amanhã sempre ocupa a mente humana, ainda mais em tempos de crises angustiantes e desestabilizadoras. Nesse sentido, mesmo que ainda envolvidos numa longa travessia dramática, o cenário atual da pandemia pauta cada vez mais os nossos olhares e pensamentos para o que virá.
O nevoeiro das dúvidas ainda é denso, mas pelo que já se vivia antes da covid-19, e também em função dos comportamentos que estamos experimentando ou incrementando neste momento absolutamente desafiante, já se pode vislumbrar um quadro de possibilidades e tendências para o pós-crise.
A pandemia acabou por evidenciar nossas mazelas e fragilidades socioeconômicas, adicionando ainda mais dor e desamparo a este tempo horrendo. Assim, mais que uma tendência, as reformas estruturantes colocam-se como um dever de casa cívico e institucional do qual não podemos abrir mão se quisermos constituir um Brasil verdadeiramente civilizado.
O Estado precisa se digitalizar, modernizar seu arcabouço legal e se libertar do sequestro secular operado por grupos de interesse instalados dentro e ao redor das máquinas governativas. É urgente melhorar o sistema tributário, atualmente um obstáculo ao crescimento do País.
A educação básica demanda um esforço prioritário de qualificação do processo de ensino-aprendizagem, fundamental para promover a autonomia cidadã e tornar viável a inclusão produtiva. Ciência e tecnologia devem ser vistas como uma fronteira para avançarmos rumo um desenvolvimento amplo e consistente.
A corrosão da globalização, patrocinada por populistas de diferentes estaturas, ganhou novos fatos e argumentos. Para uns, a crise expôs a vulnerabilidade do modelo, principalmente a interdependência das cadeias produtivas e a divisão internacional do trabalho segmentado. O fechamento de fronteiras e a “guerra” entre países por insumos e equipamentos para enfrentar a pandemia adicionaram calor às discussões.
Mas fatos da geopolítica abalam qualquer certeza sobre o enfraquecimento da globalização. O acordo de recuperação econômica da União Europeia reforça parâmetros de integração, assim como as parcerias globais que se firmam para a vacina contra o novo coronavírus.
E temos ainda a disputa eleitoral nos Estados Unidos, que contrapõe projetos antagônicos quanto a temas cruciais – clima, sustentabilidade, acordos comerciais etc. –, estando na dianteira Joe Biden, defensor de soluções articuladas planetariamente. Ou seja, sobre a globalização, a tendência é o acirramento dos debates acerca de seus fundamentos e alcance.
O eco planetário de acontecimentos locais, regionais e nacionais ganhou vigor extraordinário e a pandemia amplifica a agenda do respeito às diferenças e da busca da igualdade social.
A digitalização da vida expandiu-se de modo inédito, colocando-se como alternativa de conexões as mais diversas. Tornou-se importante para questões que vão do universo das afetividades, passando por soluções comerciais, até a viabilização do trabalho remoto nos mais variados segmentos. A digitalidade cria efeito em cadeia em outros segmentos, como o mercado imobiliário, afetando desde o desenho dos centros urbanos, passando por questões de mobilidade, até o design das residências, que estão virando o local de trabalho.
Mostra-se plausível que o trio saúde, sanidade e sustentabilidade se estabeleça de vez. O interesse por processos sustentáveis, que põe os olhos do mundo sobre a tragédia amazônica, por exemplo, deve firmar parceria com outros fatores de vida saudável, como cuidados com a saúde física e emocional e preocupações com questões sanitárias, especialmente a conexão entre zoonoses e segurança alimentar.
As múltiplas carências do País, que já havia entrado na pandemia com fragilidades, ensejaram a dinamização da sociedade civil, fenômeno que se deve consolidar. Um exemplo é o movimento de líderes empresariais, investidores e grupos econômicos junto ao governo em defesa da Amazônia.
A humanidade ocupa-se de pensar o amanhã não por mero exercício de futurologia, mas porque, como observa Santo Agostinho, o futuro – “a esperança presente das coisas futuras” – é uma das marcas cruciais do presente, a única dimensão temporal que verdadeiramente usufruímos para existir.
Além das expectativas do hoje, inspiram o olhar em perspectiva “a lembrança presente das coisas passadas e a visão presente das coisas presentes”. É assim, pois, que seguimos, com a colheita de impressões fortes do que se passou e se passa, a pensar os dias que virão. Afinal, o futuro não é um lugar para onde estamos indo, mas o que estamos construindo hoje, em memórias, sonhos, desejos, palavras, projetos e ações (Paulo Hartung, economista, presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), foi governador do Estado do Espírito Santo; O Estado de S.Paulo, 4/8/20)